A estatização da bondade humana

A estatização da bondade humana

O Globo – 6 de Março de 2017.

Cozida no caldeirão dos mágicos do Supremo, humilhada por portarias no Executivo e esquartejada por almas mortas do Congresso, a Constituição brasileira agoniza diante da desarmonia entre Poderes. E a moda de fazer lei avança na direção errada. Atenção: a política pretende estatizar a compaixão.

A filantropia é o caminho dos otimistas. Nasceu da moral privada das pessoas de bem. E só, muito depois, contaminou a ética pública dando origem ao estado de bem-estar social e os regimes democráticos. No Brasil, chegou com as Santas Casas de Misericórdia, ainda no período colonial. Muito antes da Independência e da Proclamação da República.

Quando praticada de forma verdadeira é vocação que não engana nem frustra a confiança das pessoas. A riqueza que produz é salvar setores vulneráveis do esquecimento. Imaginar sua razão de ser no campo tributário é achar que o imposto é um deus e desconhecer o milagre que a faz funcionar com milhares de colaboradores. O coletor de impostos não sabe o papel dos serviços de natureza social na economia invisível da sociedade.

Instrumento de promoção e integração de pessoas à cidadania plena, o que a impulsiona é o desprendimento, solidariedade, altruísmo, o voluntariado. A filantropia é o oposto do egoísmo. Em quase mil municípios brasileiros a única instituição de saúde é filantrópica. Para jovens que buscam estágio e aprendizagem não há nada melhor do que o CIEE. Algum setor do Estado se acha mais digno do que a APAE, o Pestalozzi? Quem não admira as Congregações religiosas que educaram o Brasil a vida inteira?

A filantropia autêntica ultrapassa o que pede a Lei. Constrói, fora do Estado, tão sólida ética pública que são bons governos que valorizam as parcerias com o setor. A assistência social, de alcance universal, sem ônus para seus beneficiários, é a mais moderna e autônoma política pública. Não pode ser objeto de escolha política errada em razão de crise econômica provocada por má governança das contas públicas. Respeitados os princípios contidos na Constituição Federal, de gratuidade, controle social e transparência deveria ser bem-vindo quem a ela se dedicasse.

O esforço do governo para se meter em tudo não é democracia. Assim, o Estado não deve pretender, em todos os casos, ser o titular, o formulador da política para a sociedade. Muitas entidades filantrópicas têm mais a ensinar do que a aprender dos governos. Foi essa autocontenção do Estado, em relação à sua competência regulatória total, que deu origem à parceria público-privada, da qual a filantropia é o mais elevado exemplo.

Ora, reduza tudo à tributação, obrigação, igualdade e a direito que do ser humano você só verá o vassalo, o subcidadão. A política não é tudo. Por isso, é sempre hora de valorizar o que nossa cultura, e pessoas beneméritas com visão de futuro, construíram. Afinal, que virtude pode ter a Sociedade onde só ao Estado cabe fazer o bem?

Paulo Delgado é sociólogo

Leia mais sobre esse assunto em  http://oglobo.globo.com/opiniao/a-estatizacao-da-bondade-humana-21011858#ixzz4aehpUTlQ

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Paulo Delgado
Paulo Delgado
Sociólogo, Pós-Graduado em Ciência Política, Professor Universitário, Deputado Constituinte em 1988, exerceu mandatos federais até 2011. Consultor de Empresas e Instituições, escreve para os jornais O Estado de S. Paulo, Estado de Minas e Correio Braziliense.

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