Afroceticismo

Correio Braziliense e Estado de Minas – domingo, 13 de janeiro de 2013.

Com mais de cinquenta países soberanos, o continente africano recebe 2013 com apenas 1% do PIB mundial. Sua população, vivendo na miséria, é cada vez mais dependente da caridade e da cobiça dos paises desenvolvidos. Persiste uma desigualdade histórica aprofundada pela intervenção estrangeira e a corrupção da maioria dos seus governantes.  Que se reflete, de um lado, na negligência dos paises que exploram o continente quanto à resolução de seus problemas sociais, e, de outro, na ingerência econômica dos parceiros de fora, aliados a suas elites abastadas e pequenas. Isto sem falar na maníaca ideologia ocidental – e mais recentemente sino-oriental – de querer alinhar e tranferir suas aspirações de poder para os países que ajudam ou exploram.

Mas não é por conta de uma conspiração dos desenvolvidos que a África não  encontra um melhor destino. Seu pleno encontro com a paz e o progresso só se fará pelo predominio de pactos sociais estáveis que diminuam a intensidade das tensões étnicas e deem fim à variada presença de regimes autoritários, totalitários e às democracias de fachada.

Com a maior taxa mundial de pobreza absoluta e cercada de trágicos conflitos armados, é uma ilusão imaginar que indicadores positivos de desenvolvimento econômico em um ou outro país levarão o continente, automaticamente, ao desenvolvimento social e à prosperidade. Nem que a África do Sul, sozinha, com um quinto do PIB de todo o continente, ou que outros países, cujo petróleo e as riquezas naturais continuam encarceradas nas mãos de oligarquias, possam projetar outro futuro melhor do que o presente.

O otimismo que desponta em alguns países após o fim das guerras civis, que os consumiram durante anos, não serviu para diminuir a repressão política nem aponta para padrões elevados de estabilidade, constitucionalismo ou sólidos sistemas institucionais multiétnicos. Todos os arranjos políticos que estão em curso não diferem da fórmula histórica cujo fundamento é a submissão do cidadão ao Estado e sua infantilização como ser autônomo e capaz. É esse Estado deformado que determina quem são e como podem se formar e se comportar proprietários ou indivíduos, dos quais se espera adesão aos regimes político, social, cultural, econômico e jurídico previamente constituídos. Na maioria dos países, a divergência e a oposição não conseguem se manifestar dentro do sistema legal, produzindo um constante confronto com a ordem estabelecida ou um rumor sem fim sobre sua legitimidade.

Existe muito engano em torno da possibilidade de recompor a cultura cívica de uma sociedade a partir unicamente da consolidação dos interesses do Estado, sem olhar para além dos sonhos e motivos que brotam da nação. Com isso, processos de desintegração costumam caminhar ao lado de discursos e atos oficiais que visam solidificar “aspirações nacionais” e “identidades coletivas”. Quando sistemas políticos se constroem sem solidariedade geral, em alguns lugares valendo-se de fronteiras artificiais impostas por colonizadores, alheios à necessária incorporação de interesses e valores os mais diversos, não são ciclos de sucesso econômico que moldarão o imaginário e a lealdade de uma comunidade aos sistemas de poder predominantes.

Há na África um mundo de subjetividades, sufocadas línguas nativas, capacidades humanas com uma variedade de aspirações e sentidos culturais e espirituais que não se conformam a modelos de igualdade, solidariedade e felicidade preestabelecidos. Especialmente por uma ordem econômica mundial conduzida pela lógica da manobra, impulsionada pela falta de solidariedade, movida pela fé na expansão de mercados e protegida por sistemas estatais e burocráticos que não estão dando conta nem da ordem interna de onde brotam nem da ordem internacional que buscam influenciar.

A África, ao contrário do título deste artigo, não pode se dar ao luxo de ser pessimista. Nem se fará próspera sem proteger a diversidade de sua natureza, populações e bens culturais. É preciso igualmente não continuar desatenta e subjugada aos interesses estratégicos da economia política mundial. A história, em todas as  épocas, confirma que não há verdades brandas para os países que decidem trilhar os caminhos da liberdade e do desenvolvimento. A integridade política e o compromisso democrático de muitos de seus líderes ainda não predominam sobre as manipulações do patrimonialismo, nepotismo e tirania de déspotas que continuam em plena posse de suas maldades.

Nada na África é um flagelo natural. O otimismo que pode impulsioná-la não deve continuar a ser mera supertição. Porque quem acredita que cortesias econômicas  são valores nada entende do sacrifício que é construir a riqueza das nações. Amar a África é ajudá-la a descobrir seus próprios pensamentos.

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             PAULO DELGADO é sociólogo.

Paulo Delgado
Paulo Delgado
Sociólogo, Pós-Graduado em Ciência Política, Professor Universitário, Deputado Constituinte em 1988, exerceu mandatos federais até 2011. Consultor de Empresas e Instituições, escreve para os jornais O Estado de S. Paulo, Estado de Minas e Correio Braziliense.

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