ALCA, EUA e Brasil

GAZETA MERCANTIL, Quinta-feira, 15 de Maio DE 1997. Opinião.

Paulo Delgado*

A aproximação da reunião de Belo Horizonte que definirá um cronograma para a conformação da Área de Livre Comércio das Américas, a Alca, vai deixando claros os interesses que estão em jogo nesse debate.

Aos Estados Unidos, gigante da economia mundial e detentor do maior PIB do continente, interessa abocanhar imediatamente o vasto mercado consumidor sul-americano e reverter a política de blocos que vem sendo implementada com sucesso, principalmente por meio do Mercosul. Com um PIB de US$ 971 bilhões e 204 milhões de habitantes, o Mercosul vem demonstrando resultados positivos, o que torna os parceiros do Cone Sul mais fortes. E a perspectiva de união do Mercosul com o Pacto Andino faz de toda a América Latina um vigoroso bloco econômico.

É essa força que o governo norte-americano quer evitar. A sua posição nas negociações para a formação da Alca tem sido, claramente, com o objetivo de atropelar o Mercosul. As reuniões preliminares do encontro, no entanto, já definiram a coexistência da Alca com outros blocos regionais. A disputa, agora, é quanto ao cronograma de implantação e à necessidade de os Estados Unidos aceitarem a superação do impasse em relação ao formato diplomático e temático do encontro de 34 países soberanos.

O governo dos EUA insiste na negociação um a um com os países do continente, em vez de bloco a bloco, buscando utilizar-se dos eventuais interesses contraditórios entre eles. Os EUA querem a abertura imediata das economias dos países americanos, independentemente das situações internas de cada um e sem discutir as restrições da sua própria política exterior, como as barreiras existentes à entrada naquele país de vários produtos brasileiros.

O princípio da reciprocidade vigente no comércio internacional – e a cujo respeito a Constituição de 1988 obriga, em seu artigo 178 – não costuma ser considerado pelos EUA. Um exemplo, na área de transportes e o Acordo sobre Transporte Marítimo, do qual sou relator, que está na pauta desta semana na Comissão de Relações Exteriores da Câmara Federal. O Acordo liberaliza o transporte marítimo de cargas entre os dois países, comprometendo-se, ambos, a adotar os princípios da liberdade e tratamento não-discriminatório no seu comércio marítimo bilateral e no comércio com terceiros.

Em sua justificativa, o governo brasileiro afirma que o pressuposto geral do Acordo é o “princípio da reciprocidade de tratamento entre as partes”. Mas um item restringe o acesso de navios brasileiros a “exportações norte-americanas de produtos agrícolas e de produtos amparados pela Seção 901 b, da Lei de Marinha Mercante dos Estados Unidos da América, de 1936”. É um acordo mediante o qual o Brasil abre completamente seu tráfego marítimo para um país mas a outra parte deixa de fazê-lo para uma série de produtos. Onde fica a reciprocidade? Quantos e quais produtos estão incluídos na tal lei? O correto seria desobrigar o Brasil de conceder aos EUA o acesso aos mesmos produtos que lhe são negados. Devemos referendar o Acordo, ressalvado o item que trata dessas exceções. A reciprocidade afirmada pelos EUA não passa de um tratamento não igualitário. São tantas as exceções que elas podem virar a grande regra.

Esse é o livre comércio que o governo dos EUA propõe, pressionando para que a Alca passe a funcionar já a partir de 1998. Não leva em conta os cronogramas próprios do Mercosul e as adaptações que economias mais frágeis, como as latino-americanas, temos que fazer para enfrentar a entrada livre de produtos de países fortemente industrializados, como os próprios EUA e o Canadá. Acho que atualmente poucos defendem o fechamento total da economia, mas, definitivamente, nenhum país pode querer abrir seu comércio para morrer no mar. É preciso estabelecer critérios rígidos para a abertura da economia, manter algumas reservas de mercado e observar sempre o princípio da reciprocidade, para que possamos suportar a concorrência de um mercado livre.

Nessa disputa, as ações correm o risco de não ter limites. Estrategicamente, os Estados Unidos apostam nas possíveis divisões dentro da América Latina. Por isso, vemos com temor a retomada de negociações entre os países do continente e a indústria bélica mundial, em uma conjuntura de paz, política e estabilização econômica. A venda de aviões F – 16 ao Chile, o principal aliado dos EUA na discussão sobre o cronograma de implantação da Alca, está autorizada pelo Departamento de Defesa norte-americano desde o início deste ano. O receio de uma corrida armamentista por aqui vem junto com o aceno dos EUA à Argentina, no sentido de tornar-se parceira preferencial na Otan.

Como a maior economia latino-americana, tem cabido ao Brasil a liderança nas negociações da Alca e, conseqüentemente, o confronto direto com o governo norte-americano. A posição do Itamaraty tem sido a de reforçar a negociação 4 por 1, ou seja, o Mercosul só negocia em bloco. Há algumas condições, no entanto, que enfraquecem a autonomia do Brasil frente aos Estados Unidos. Uma delas é a insuficiência da democracia brasileira. Aqui, a função do Congresso Nacional é somente a de referendar as decisões do Executivo, a quem apenas observa durante as negociações. O Congresso norte-americano delibera sobre o poder do governo nas negociações e acompanha passo a passo o seu nível e extensão.

Um outro fator de fragilidade do Brasil nesse processo foi forjado pelo próprio governo brasileiro. Anfitrião do encontro decisivo sobre a Alca, o Brasil não convidou Cuba para participar do Fórum das Américas, abrindo mão da prerrogativa que a diplomacia lhe dá de decidir quem convida ao seu território. Com a agravante de que o país politicamente rejeitado é comercialmente parceiro do anfitrião em 133 itens. O Itamaraty justifica a decisão pelo fato de Cuba não te participado do encontro inicial, em Miami, em 1994. Ora, à reunião de Miami compareceram os convidados dos Estados Unidos, e todos conhecem as relações diplomáticas dos EUA com Cuba. Ao abrir mão da sua soberania, o governo brasileiro compactuou com a política diplomática norte-americana, fragilizando-se para a defesa do Mercosul e da América Latina nas negociações da Alca.

Não é à toa que os Estados Unidos pretendem implodir o MERCOSUL ou outras possibilidades de acordos regionais, mantendo o velho modelo de negociações bilaterais nas quais o mais forte engole o mais fraco. O desempenho do Mercosul o vem fazendo cobiçado por outros blocos e países, como a União Européia e o Canadá. A dificuldade dos EUA é admitir que economias mais frágeis que a sua possam estar caminhando com as próprias pernas, inclusive negociando com gigantes como a União Européia, cujo PIB é ligeiramente superior ao do Nafta. Mas o caminho está feito e a sede de domínio dos norte-americanos tem que ser refreada. Não há igualdade entre desiguais e acordos significam ganhos de todos os lados. Os Estados Unidos sabem, como ninguém, defender seus interesses. Não é aceitável que os norte-americanos queiram de nós comportamento diferente.

*Deputado federal (PT-MG), membro da Comissão das Relações Exteriores da Câmara Federal.

Paulo Delgado
Paulo Delgado
Sociólogo, Pós-Graduado em Ciência Política, Professor Universitário, Deputado Constituinte em 1988, exerceu mandatos federais até 2011. Consultor de Empresas e Instituições, escreve para os jornais O Estado de S. Paulo, Estado de Minas e Correio Braziliense.

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