Honra ou proveito

O Globo – Opinião – Paulo Delgado

Sobre o interesse público separado da função política repousa o olhar de leiloeiro

O negócio profanou a honra do poder. A ousadia e a impunidade cresceram com esse destemor torto, sem norte, da autoridade. Os que têm vocação e vivem para a política, o bem comum, convivem com os que vivem da política para a manipulação de toda espécie – que ela franqueia a quem a isso se dedica. A escassez de moderação, valores, medo ou culpa agrava o quadro e dificulta a construção institucional para a austeridade e o equilíbrio. Nenhuma nação fica ou se mantém rica sendo institucionalmente fraca.

A política garante aos políticos uma espécie de disfarce. Não se trata de treva ou obscuridade. É um sistema. Poucos distinguem a música tocada, pois se acostumaram com a melodia. Mas seus objetivos só são atingidos com a colaboração do mundo que gravita em torno dela. Dois deles são velhos conhecidos: burocracia – que torna tudo mais caro, difícil e inexplicável – e carreirismo e sua gula infinita por posições, cargos de confiança, atraindo para o círculo do poder muitos ambiciosos. Dois outros mais recentes: publicidade e propaganda, que, além de consertar qualquer erro do homem público, criou o partido de aluguel, a doença da eleição permanente e a vaidade como princípio. A onda inundou os poderes da União e o alvoroço da autoridade, num registro único, embarcou no espetáculo de que tudo é eleição, disputa e sua volúpia.

Os paradigmas da política polarizada entre o bem e o mal são os mesmos. Dois lados da mesma moeda. Para girar essa roda da politização de tudo produziu o desenvolvimento das suas características morais. Que pressupõe subordinação aos princípios da ética privada a lealdade como cumplicidade. E ver com irritação a crítica e a desconfiança, princípios da ética pública.

Além disso, a combinação do materialismo mais tosco com o puritanismo moral mais fosco impôs o padrão da atividade política e contagiou a todos os que lhe chegam perto. Não é mais possível ver o bom de maneira boa, pois o bem visa, muitas vezes, ao mal. Como dizem os espanhóis: honra e proveito não cabem no mesmo saco.

Assim, o interesse público acaba separado da função política e sobre ele repousa o olhar de leiloeiro que avalia e põe preço em tudo que observa.

A ação policial e os tribunais perdem credibilidade e técnica quando tomam parte no conflito e selecionam cúmplices, dentre os acusados, para suas atuações. Como se fosse possível punir o erro com o erro, afirmar a virtude com a sua falta. A publicidade e a rixa política cuidam do resto: anestesiam o cidadão, orientam a crítica para a piada e o trocadilho, formas inofensivas de indignação. São hoje os espetaculares tentáculos do status quo – com suas apreensões, prisões, inquéritos e votos, fitas, filmes, fotos, vídeos, blogs, pesquisas, criatividade judicial, rivalidade política boçal – os maiores responsáveis por acostumarem o país com a corrupção e o crime contra o interesse público. É como um pai que berra sem parar e de compulsão em compulsão amplia a fermentação do sem sentido, sem lei, na cabeça de toda a família.

Conflito maniqueísta entre iguais, o ódio dos políticos entre si não comporta qualquer risco de mudar comportamentos. Correr com a lebre e caçar com os cães, para ser caça e caçador ao mesmo tempo. Não há benevolência em não se mostrar exigente quanto ao procedimento dos outros. É uma questão de casta, clube privé. Ser réu virou uma questão de opinião, pois sem o recolhimento de magistrado o juiz não percebe que virou um delegado vestido de advogado.

A presunção de ser sempre o esperto e inatingível lembra Freud e o chiste, admirável suspensão da moralidade opressiva contra o arbítrio e a hipocrisia: um príncipe passeava por sua província e notou na multidão um homem extraordinariamente parecido com sua pessoa. Orgulhoso do rei, seu pai, o perguntou: sua mãe esteve alguma vez a serviço do palácio? Não alteza, lhe respondeu seguro e humilde o servo. Foi meu pai quem por lá esteve!!

Virtudes verdadeiras são melhores quando servem aos outros. A ambição de políticos – essa boa vaca que lhes fornece leite – não é o único destino da política.

Paulo Delgado
Paulo Delgado
Sociólogo, Pós-Graduado em Ciência Política, Professor Universitário, Deputado Constituinte em 1988, exerceu mandatos federais até 2011. Consultor de Empresas e Instituições, escreve para os jornais O Estado de S. Paulo, Estado de Minas e Correio Braziliense.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *