NÃO ENSAIES DEMAIS AS TUAS VÍTIMAS

NÃO ENSAIES DEMAIS AS TUAS VÍTIMAS

Correio Braziliense e Estado de Minas – domingo, 20 de agosto de 2017.

Sei que é um abuso usar um verso de Carlos Drummond de Andrade, do poema Véspera, para falar de desamor e ameaça de guerra. Mas a cada dia o mundo está diante da vida passada a limpo.

No bojo de toda a imprevisibilidade que causou a ascensão de Donald Trump ao maior poder singular e oficial no mundo, um item em especial intrigou, distinta e alarmadamente, os observadores mais implicados com a confusa governança que sustenta a paz no mundo. O esdrúxulo, mas funcional equilíbrio que evitava um confronto entre EUA e Coreia do Norte, não previa um líder assim do lado americano.

O completo despreparo, a imprudência e os impulsos bélicos do ditador norte-coreano são bem espionados e documentados. Deixada à parte a triste sina dos que se encontram sob seu jugo, o realismo do xadrez internacional encontrou na dívida existencial que Pyongyang tem para com Pequim o meio para impor limites aos devaneios que movem a espalhafatosa ditadura. O capital que viabiliza todos os projetos mais robustos da Coreia vermelha – e por tabela a patética megalomania – vem da China. Para fins de referência, vale lembrar que sua área é um pouco menor do que a do Amapá e seu PIB per capita é de mil dólares. Um décimo do que temos no Brasil e um cinquenta e sete avos da realidade estadunidense.

Se a América Latina e a África que flertaram com a opção comunista sonhavam e contavam com o ouro de Moscou, nos dias de hoje muitos países na Ásia e na África querem a grana de Pequim. Dentro de tal grupo a Coréia do Norte é um caso singular. Se analisados às cegas, os dados quantitativos e qualitativos das trocas comerciais entre os dois, qualquer analista diria se tratar a entidade menor de parte da maior. Economicamente dependente ao extremo, a dinastia à frente do país apostou na ameaça nuclear para se fazer escutada e relativamente temida.

Durante os muitos anos em que a própria China era ente estranho ao clube da governança global, as estripulias nucleares de Pyongyang ficaram listadas no rol das táticas assimétricas de inserção do país dos mandarins de esquerda nas conversas regulares sobre a segurança global.  Patrocinada por realistas pouco prudentes e bastante cabeças-duras, a estratégia chinesa deu certo por um tempo. Mensurar o quanto a tática do uso da Coréia nuclear contou para isso é impreciso, senão impossível. O fato é que hoje Pequim chegou onde queria de forma tão consistente que a carta na manga representada pelo perigo norte-coreano perdeu a utilidade e acabou se tornando inconveniente.

São essas as razões que desaguaram na firme atitude de Pequim com vistas a desencorajar o prosseguimento da verborragia belicista que testa os limites da diplomacia. Postura concatenada com a escalada de ações militares que são interditadas pela maioria dos países.

Ninguém tem muita paciência com líderes de uma geração que não viveu a II Guerra e quer ter peso para começar a terceira.

Na China, durante a semana, o Chefe do Estado Maior das Forças Armadas dos EUA, acompanhado de seus principais colegas, formalizou um acordo crucial para diminuir a chance de interpretações equivocadas no dia-a-dia do equilíbrio de poder entre os países. A urgência do acordo, selado com extraordinária celeridade, é fruto em específico da situação da Coréia do Norte. Se Pequim e Washington não estiverem afinadas podemos viver uma escalada trágica e imprevisível de destruição. Por outro lado, se mantiverem um entendimento razoável, a intervenção, seja militar ou meramente política, poderá ser eficiente e cirúrgica.

Uma ação que realoque o conjunto de garantias mútuas e dissuasão para um novo equilíbrio asiático regional, sem ameaça mundial. Surpreendente é que as duas potências ainda consideram a possibilidade do estabelecimento de canais e travas que garantam a segurança da região, sem a mudança do regime escandaloso.

Kim Jong-un, mantida sua relativa sanidade e senso de preservação da própria vida, não é um visionário ou revolucionário a sério. Ele se enquadra bem mais no papel de uma espécie de aprendiz de feiticeiro. Resultado sombrio de uma das guerras mais absurdas e sanguinárias do século XX que convulsionou uma gente de mesmo sangue e historicamente cordial e pacífica.

É impossível nutrir qualquer simpatia para com a ditadura que reina sobre os seres mais manipulados do planeta. Todavia, há criatividade e inteligência no mundo para remover o regime com um acordo que evite a guerra. Todas as últimas experiências de conflitos armados saíram do controle.  Sendo assim, que o déspota possa migrar da imponência para a insignificância e seja preservada como área pacífica que parece interessar mais à China do que aos EUA.

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Paulo Delgado é Sociólogo.

Paulo Delgado
Paulo Delgado
Sociólogo, Pós-Graduado em Ciência Política, Professor Universitário, Deputado Constituinte em 1988, exerceu mandatos federais até 2011. Consultor de Empresas e Instituições, escreve para os jornais O Estado de S. Paulo, Estado de Minas e Correio Braziliense.

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