O anjo bom

Correio Braziliense e Estado de Minas – domingo, 30 de outubro de 2011.

Não importa o que fizeram de nós, o importante é o que fazemos com o que fizeram de nós. Essa é a senha para encontrar a saída para a luta do dia a dia. Quem prejudica alguém não se dá conta que a vítima conhece o agressor pelas feridas que carrega: o mal que se faz ao outro é o medo que temos em nós. É o que o psiquiatra da Martinica, Frantz Fanon, em seu livro “Os condenados da Terra” ensina aos seus irmãos argelinos sobre os franceses da época da resistência contra a ocupação estrangeira. Na obra prefaciada pelo filósofo Jean Paul Sartre, tem-se como caminho de liberdade contrapor à violência cotidiana o resto de humanismo que sempre temos em nós.

O fim da ocupação de um país pelo outro tem feito o mundo melhorar, e o comportamento agressivo vem perdendo prestígio. É o que se compreende, de forma otimista, quando se acaba de ler a edição da semana passada da revista britânica Nature. A mais antiga publicação científica do mundo informa que há um declínio gradual e inegável da violência. Mesmo que não seja essa a impressão quando observamos diariamente o noticiário nacional e internacional.

A matéria é baseada no livro “Os melhores anjos da nossa natureza”, do linguista e filósofo canadense, psicólogo em Harvard, Steven Pinker. Ali são traçadas conexões inesperadas entre o declínio das guerras e dos conflitos atuais e a diminuição das mais variadas e sutis formas de violência a que estamos submetidos. Com gráficos e tabelas surpreendentes, o psicólogo demonstra que as guerras tribais são nove vezes mais mortais que as duas guerras mundiais e que a taxa de homicídio da Europa medieval era 30 vezes superior às taxas de hoje. Até a crueldade com animais diminuiu. Pinker concluiu que a sociedade mundial vive um recuo da violência, que vai desde a diminuição do espancamento de crianças à possibilidade concreta de estar perto do fim o arsenal nuclear que nos ameaça.

Usando estatísticas e conceitos dos estudos de criminalidade, da sociologia urbana, da antropologia familiar e da política internacional, o polêmico cientista apresenta, como um verdadeiro pop star da filosofia moral, um panorama provocante e otimista de suas ideias e crenças, algumas sem fundamento. Afinal, é ele mesmo que alerta para a falta de documentação segura sobre os níveis surpreendentes da violência humana ao longo da história.

Ataques terroristas, fome, guerras civis e a contraviolência das primaveras políticas são meros soluços estatísticos em um mundo que está ficando cada vez mais seguro para se viver. Pinker está certo que todas as formas de violência estão em declínio e os anjos bons da natureza estão vencendo a batalha contra os conquistadores maníacos da alma humana. Qualquer herói da antiguidade seria processado como “criminoso de guerra”, diverte-se o psicólogo canadense. Ele não tem dúvidas da irreversibilidade do progresso da inteligência humana, da melhoria do comportamento social e da diminuição da barbárie. Segundo diz, isso está ocorrendo a partir da expansão da educação e do cosmopolitismo – que leva mais gente a viajar e a interagir em diferentes sociedades; do avanço da imprensa – como o livre debate de ideias; e com a crescente aceitação do monopólio da segurança pelo Estado democrático.

Para o autor, o aperfeiçoamento da racionalidade e empatia, mais do que a elevação do sentido moral das pessoas, é que tem feito as coisas melhorarem. Ele lembra que todos os castigos sangrentos, as torturas, as fogueiras, as mutilações, as perseguições e os sacrifícios buscavam legitimidade em fundamentos morais de reis, religiões, tiranias políticas e preconceitos. E assegura que aumentou a convicção de que violência crônica rotineira atrapalha a produção de riqueza.

Mas saber por que a violência é cometida é tão importante quanto contar as vítimas que produziu. Assim como é possível esquecer-se do sofrimento oculto pela violência quer não é física; da violência resultado das imutáveis injustiças econômicas; e daquela que tira a sensibilidade dos jovens quando expostos à brutalidade sem punição – a violência gratuita dos jogos, programas e filmes de televisão.

Nada é inteiramente físico e nem todo mal é facilmente compreendido. A motivação para a violência é uma das principais diferenças entre a moralidade humana e o instinto natural. E o mal, quando praticado a partir do mundo racional e científico é mais terrível que nos tempos bárbaros. Ou seja: se a moralidade contemporânea não é compreensível, os horrores na vida atual tornam-se maiores, mesmo que em menor número, do em qualquer tempo passado. Nada disso é percebido no estudo de Pinker. Talvez daí o ceticismo que seu livro provoca.

Isso para não dizer que a tecnologia de destruição em massa, disponível no mercado de guerra, pode tornar irrelevantes a paz e o progresso alcançados até aqui.

Paulo Delgado é sociólogo, foi deputado federal.

Paulo Delgado
Paulo Delgado
Sociólogo, Pós-Graduado em Ciência Política, Professor Universitário, Deputado Constituinte em 1988, exerceu mandatos federais até 2011. Consultor de Empresas e Instituições, escreve para os jornais O Estado de S. Paulo, Estado de Minas e Correio Braziliense.

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