O Desmancha – Prazeres

Qual a disposição atual de se indispor com o poder? Seja num país autoritário, parcialmente livre ou democrático. Quem tem coragem ou desprendimento para arriscar uma opinião divergente quando tudo parece estar em ordem? Quem tem dúvidas de que governos erram mais nos momentos mais favoráveis? Bem sabemos que o sucesso em política tem menos a ver com o cérebro do que com as vísceras. Também não há nenhuma garantia contra idéias ruins de críticos e opositores. Mas poder dar uma opinião contrária sem ser perseguido, preso ou exilado é um bom sinal da qualidade da política de um país.

A forte publicidade em torno do exercício do poder e da política – os profissionais da presença em que se transformaram os políticos – desmantela o vigor dos valores individuais, intimidando a voz dos não especialistas. Acomodando todos ao pragmatismo da vida social movida por interesses pessoais, indiferentes a valores coletivos, comunitários. Difícil se incomodar com o torpor quando é impossível imaginar nossa capacidade para mover a vida em direção a outros caminhos. As pessoas sabiam que estava lá, ainda que um Arquipélago muito distante, mas, psicologicamente, fundido ao continente – um mesmo país, invisível e imperceptível. Divulgando o mal como mal, chamando o erro de erro muitas vezes, para a política, quem assim o faz é traidor. Mas, com coragem diz Amós Oz, em ¨Contra o Fanatismo¨: só quem ama pode tornar-se um traidor. A traição não é o contrário do amor, é uma das suas opções. Traidor é aquele que muda aos olhos dos que não podem mudar, não mudariam, odeiam a mudança e não podem conceber a mudança com exceção de que sempre querem mudar você. Aos olhos do fanático, traidor, é qualquer pessoa que muda. E não ser fanático significa ser, em alguma medida e de algum modo, traidor aos olhos do fanático.

Acolhido pelo Ocidente, pressionado para aceitar sua cultura, não podendo voltar ao seu país, encontra forças para criticar a decadência espiritual daqueles que lhe ofereciam asilo. Reencontrou seu país após o exílio e expressa seu descontentamento e insatisfação com o que vê de fracasso com a educação do povo, corrupção, desdém com a democracia entregue a plutocratas e a líderes de um nacionalismo imperial que colocam seu orgulho na ponta das armas e cifrões de origem duvidosa. E se faz novamente malquisto. Inconveniente, mordaz, solitário entre compatriotas arrogantes, metidos em negociatas e manipulação. Longe da sonhada tradição religiosa e ortodoxa, fundamentos de uma cultura e destino únicos, com vocação civilizatória. Nunca deixou de pensar: qualquer cultura antiga, profundamente enraizada em sua autonomia, especialmente quando se espalha por uma grande parte da superfície da terra, mistura em si um mundo autônomo, cheio de nuances e surpresas para o pensamento ocidental (Harvard, 1978).

Intelectual usado que não se deixa usar – usam suas idéias sem moldar seu pensamento – disponível para as boas idéias nacionalistas, vacinado contra os humores dos governantes foi-se, mês passado, Alexander Solzhenitsyn. Capitão da artilharia avançada do exército russo na Segunda Guerra. Vencedor que terminou prisioneiro por escrever cartas de críticas ao “homem com um bigode”, interceptadas pela bisbilhotice governamental, como sempre. Um cidadão desagradável, desmancha-prazeres nos tempos da euforia. Preso no Cazaquistão, submetido a trabalho forçado, conheceu o Gulag. Exilado na Europa, ganhador do Prêmio Nobel, exilou-se no interior dos EUA.

Em um tempo de silêncio dos intelectuais e frangalhos da autonomia individual a coragem pessoal do grande urso é um bom exemplo. Principalmente porque o silêncio no mundo de hoje não é por medo do poder, mas por apetite, ambição de servi-lo.

Paulo Delgado
Paulo Delgado
Sociólogo, Pós-Graduado em Ciência Política, Professor Universitário, Deputado Constituinte em 1988, exerceu mandatos federais até 2011. Consultor de Empresas e Instituições, escreve para os jornais O Estado de S. Paulo, Estado de Minas e Correio Braziliense.

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