5G, o fim da privacidade
O Estado de S. Paulo – 8 de Janeiro de 2020.
A árvore que não verga quebra, mas um país não é uma árvore. O leilão das faixas de frequência para a quinta geração de telecomunicação móvel (5G), previsto para março, foi adiado indefinidamente, em controversa decisão da Anatel. O Brasil vive o incômodo de não saber se é melhor grandeza, isolamento ou ser arrastado para uma guerra dos outros.
De forma direta, o adiamento é um atraso imposto ao Brasil com relação a outros países do mundo nesta que é a infraestrutura de negócios com maior potencial de expansão e lucro para as duas próximas décadas. Por outro lado, pode ser também uma chance para aumentar a atenção da indústria, do setor de serviços, dos militares e de toda a sociedade brasileira para a importância estratégica do 5G para o progresso.
O Japão já testa o 5G desde 2014 e tem uma bem traçada estratégia desde 2016. A Coreia do Sul, com forte planejamento central em apoio a empresas nacionais exportadoras de tecnologia, tem a maior difusão de 5G no presente momento e está surfando na frente na produção de aplicativos e outras tecnologias e serviços associados a ele.
A China, que já é o maior mercado do planeta, a União Europeia, que é o segundo, e os EUA, que ressentem a terceira posição, todos têm o 5G em operação e avançando. Esses três mercados também são grandes produtores de tecnologias de informação e comunicação (TIC) para consumo próprio e exportação. Sintomaticamente, de 2012 para cá, enquanto o 5G era desenvolvido e implementado, o estado da arte do setor também acompanhou essa sequência entre esses três mercados produtores: China em primeiro, União Europeia em segundo e EUA em terceiro.
>Até poucos anos atrás, enquanto a globalização e as cadeias globais de valor eram defendidas a ferro e fogo pelos EUA, o detalhe de que o 5G era uma obra majoritariamente asiática e europeia não era tão importante assim para Washington. Na circunstância atual, passou a ser assunto de segurança nacional, com o Departamento de Estado, que é o Ministério das Relações Exteriores dos EUA, promovendo um esforço de boicote sem precedentes contra a atuação de empresas chinesas líderes no 5G. Em que medida o recuo da Anatel é a de um escravo das circunstâncias é um mistério mal oculto.
Até aqui, a argumentação americana para convencer outros países contém muita embromação, pouca sinceridade cooperativa e duas realidades objetivas. Uma é que tomadores de decisão nos EUA acham que prejudicar as empresas chinesas no 5G é a forma de revidar e conter o fato amplamente documentado de que a China pratica espionagem corporativa em larguíssima escala. Algo facilitado pela internet e levado a um novo patamar com o 5G. Outra é que o mundo da telecomunicação móvel é de riscos cada vez mais altos e maiores incertezas relacionadas à segurança cibernética. Tanto em relação à privacidade de dados e pessoas, quanto a riscos físicos.
Sobre onde está e para onde vai a privacidade de dados, o conceito do vice-presidente da Google, Vinton Cerf, é o que se está impondo. Cerf acumula o curioso cargo de evangelista-chefe da internet para a empresa e acredita que privacidade foi uma “anomalia” social circunscrita às grandes áreas urbanas dos séculos 19 e 20. Algo como se preparasse uma jurisprudência moral para acabar com qualquer vestígio da liberdade individual. O 5G pode ser o fim do alicerce filosófico que deu ao ser humano seu mais profundo ideal, que é o de poder ser livre. Bem, esse homem original poderá ser estudado em cátedras de “arqueologia da privacidade” nas universidades inúteis do futuro. Por outro lado, dentro da indústria há quem aposte que a briga por privacidade e direito de propriedade sobre os próprios dados vai se expandir cada vez mais, como admite o presidente da Microsoft, Brad Smith.
Quanto aos riscos físicos, eles aumentam muito porque o 5G estará na automação das indústrias, do agronegócio, da infraestrutura que rege o funcionamento das cidades, nos armamentos e na vigilância eletrônica. Em suma, seus sonhos de ubiquidade mudam a escala das questões mundiais.
Após perceber que era fraca a lógica de simplesmente pedir por aí que países proíbam a participação chinesa no 5G, um ramo do governo americano passou, inteligente e astuciosamente, a incentivar a criação de um 5G de código aberto. Estratégia liderada por Lisa Porter, do Departamento de Defesa, faz mais sentido como parceria de desenvolvimento do que a proposta do Departamento de Estado.
Com o leilão suspenso, o Brasil pode frear de vez seu futuro tecnológico ou aprimorar sua estratégia mundial para o 5G. Da China deve solicitar a implantação aqui de um Centro de Avaliação de Segurança Cibernética da Huawei nos moldes do que existe no Reino Unido. Com foco em transferência de tecnologia e desenvolvimento de produtos e serviços de telecomunicação móvel e microeletrônica para exportação do Brasil. O governo deve ainda olhar o acordo da Huawei com a Índia para saber o que almejar.
Com relação aos EUA, sugiro que toda vez que uma autoridade brasileira receber pedidos para restringir a participação chinesa no 5G, deve retornar pedindo que empresas, universidades e pesquisadores brasileiros – civis e militares – participem a sério do atual esforço estadunidense de construir uma alternativa americana e, a princípio, de código aberto de 5G. Se os EUA tiverem uma compreensão de América não puramente subjugada, mas regional, não violenta e cooperativa, é possível trabalhar junto.
O equilíbrio entre os interesses divergentes deve ser aquele que maximiza o desenvolvimento brasileiro. EUA e China pensam assim com relação a seus próprios interesses.
Passados os estranhamentos de curto prazo, o mais provável é que EUA e China estejam daqui a umas décadas mais ricos e em paz um com o outro. E o Brasil, como estará?
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