A política corporativa
VEJA, 30 DE MARÇO, 1988 – pág. 138
Os parlamentares brasileiros são absolutamente iguais em pelo menos um momento da política ─ o das campanhas eleitorais, quando todos, sem exceção, se declaram combatentes pela moralização da vida pública. Infelizmente, uma outra atitude reduz a grande maioria à mesma vala comum ─ a do corporativismo, que acomoda parlamentares da mais variada extração partidária logo depois que, eleitos, se instalam nas confortáveis cadeiras da Câmara e do Senado Federal ou da mais modesta casa legislativa municipal. Todos parecem irmãos, independente do partido ao qual se filiaram ou da ideologia pela qual disputam o voto, no momento em que um “colega” é pilhado contrariando, na prática, o discurso moralizador que exibiu nos palanques eleitorais. Se não podemos generalizar essa anomalia de nossa baixa cultura política ao plenário da Assembléia Constituinte, em quatro episódios recentes o nosso Legislativo deu exemplos de que ainda há muito o que mudar em nossa maneira de agir.
Apenas nos últimos doze meses tivemos um deputado paraibano, Agassiz Almeida, acusado de forjar a assinatura de um correligionário em benefício de seus interesses eleitorais. A acusação não foi apurada. Um senador pelo Maranhão, Edison Lobão, encontra-se cercado de evidências que o implicam como o “pianista” que fraudou o voto de outro parlamentar de seu Estado, o do deputado Sarney Filho. A comissão encarregada de apurar o episódio declarou-se incapaz de fazê-lo. Um deputado pelo Rio de Janeiro, Daso Coimbra, declarou a meia dúzia de jornalistas que o voto dos constituintes está sendo mercadejado pelo Palácio do Planalto em troca de favores pessoais. Não foi capaz de sustentar a acusação depois que a viu publicada, e convocou-se uma sessão da Câmara para decidir se o parlamentar deveria ser punido por sua irresponsabilidade. A maior parte dos deputados negou quorum à sessão e nada se decidiu.
Finalmente, dando cumprimento a um dispositivo do próprio regimento interno da Assembléia Constituinte, divulgou-se uma lista de parlamentares que, por faltarem a mais de um terço das sessões, deveriam ter seus mandatos cassados e ser substituídos por suplentes dispostos a trabalhar na elaboração da nova Carta, como vem fazendo a maioria dos eleitos. Como autor dessa denúncia, enfrentarei manifestações de hostilidade muito além do que poderia ter imaginado antes de assumir este meu primeiro mandato. Por outro lado, nenhuma providência foi adotada pela mesa diretora para dar conseqüência à denúncia da fraude cometida por esses poucos parlamentares que, com seu comportamento e sua ausência injustificada, estendem ao Legislativo, como um todo, a pecha de um grande colégio de gazeteiros. A mim, restou o papel de bedel sem vara e sem o respeito dos alunos.
Prevaleceu nesses quatro episódios o espírito corporativista que já se transformou em um hábito de nossa vida parlamentar. Ele é gerado em um grande equívoco, que confunde o interesse público com o interesse privado do político. Na base desse equívoco está a idéia de que nós, deputados e senadores, constituímos uma “classe política”, com características, origens, papéis e interesses próprios. Ora, a eleição não dissolve a classe social do cidadão eleito. Pelo contrário, projeta no plano nacional as preocupações e as aspirações dos setores sociais que o parlamentar representa. Constituir novo estrato social depois de adquirido o mandato é fraudar o caráter reflexo e representativo do voto. É trocar, num passe de mágica, as contradições do mundo real por uma irmandade de fantasia, à custa da imagem do Poder Legislativo perante a opinião pública.
Cada vez que os políticos se fecham em copas para defender o injustificável interesse corporativista, a “classe” torna-se menos digna de respeito e confiança aos olhos de quem, afinal de contas, lhes deu emprego ─ os eleitores. Sabemos que a vida parlamentar conduz à convivência regular entre os políticos de diferentes tendências. Mas isso não pode jamais implicar nenhum acordo ou compromisso recíproco de caráter pessoal, que possa gerar privilégio, cumplicidades ou ambigüidade no exercício íntegro e coerente do mandato. Do ponto de vista individual, privado, um parlamentar não tem com outro parlamentar interesses comuns a defender. Não podem os políticos proteger-se mutuamente, como se o Parlamento fosse um sindicato de trabalhadores ou uma associação de pais e mestres. Mesmo em associações de defesa de objetivos comuns, ressalte-se, não se misturam a luta por interesses coletivos e a cumplicidade com transgressões cometidas individualmente por alguns de seus membros.
O Poder Legislativo estará sempre limitado em sua missão de fiscalizar os outros poderes da República enquanto deputados e senadores não estiverem dispostos a aniquilar o bom-mocismo da convivência parlamentar que tolera e protege os seus membros em qualquer situação. A impunidade parlamentar é o avesso da imunidade parlamentar, e, mantida a primeira, desaparecem as condições para se exigir a segunda. Para que não haja dúvidas de que nossa atuação fiscalizadora e normalizadora não é simples “ marketing” de baixo eleitoralismo, já é hora de dar o exemplo ─ acabar com a autocomplacência e o protecionismo que desmentem os compromissos dos palanques. Atitudes ambíguas não podem fundar uma nova cultura política.
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Paulo Delgado é deputado federal pelo PT-MG