Reflexos da Índia

Correio Braziliense e Estado de Minas, domingo, 28 de agosto de 2011.

A Índia é movimento e multidão. Quando Anna Hazare, um senhor de 74 anos, foi preso por protestar contra as talhas e limitações contidas na lei anticorrupção, o verão em Nova Délhi esquentou mais ainda. Imediatamente, milhares de pessoas saíram às ruas para apoiar o líder. Querem que a lei, em discussão no parlamento indiano, seja alterada, para acabar com as exceções que livrariam políticos e magistrados de serem julgados. “Só é aceitável um forte Lokpal (escritório anticorrupção) de vasto alcance que possa julgar qualquer cidadão suspeito de práticas fraudulentas, sem importar cargo, poder ou condição social”, advertiu, sem autopiedade, o ativista anticorrupção. O premiê indiano não aceita a forma escolhida por Hazare para protestar. “A greve de fome… é um caminho totalmente equivocado e carregado de consequências para a nossa democracia.”

O que certamente incomoda o primeiro-ministro é bem mais do que a memória da luta contra os ingleses. Ele determinou que só fosse tolerável um jejum de 15 dias, considerando que mais do que isso seria provocativo e deflagrador de distúrbio. É que hoje falta dimensão espiritual à política. Há um descompasso evidente entre a imagem mental que os líderes tradicionais têm do poder, com sua pompa e afetação, e o surgimento inesperado do líder popular, capaz de combinai ação e passividade. Num tempo tão desprovido de altruísmo e austeridade, surgiu do nada a figura única de um Gandhi. É a espiritualidade do jejum ameaçando o festim da política!

A índia sempre soube fazer conviver e combinar o privilégio com a devoção. É um país que criou religiões, onde o conflito entre o hinduísmo e o islamismo retoma sempre. Seu sistema social de castas não consegue mais conservar e regular a fragmentação do país, pois o surgimento da democracia tem agitado o gigante. Há um número infindável de partidos, e os arranjos políticos que daí derivam permitem mexer na vida das pessoas, com a ascensão e a queda de famílias inteiras em muito pouco tempo. Assim, o povo encara a política como um navio, e a si mesmo como uma escada de bordo, que somente sobe se agarrado a ele.

O controverso prêmio Nobel de Literatura Vidiadhar S. Naipaul, de família indiana, descreve uma reunião parlamentar em que “os deputados viviam freneticamente, em constante movimento, como um grupo de pinguins caminhando em meio à tempestade de neve. Os da periferia, tratando de atingir a massa dos que estavam no centro do grupo, onde era mais quente. A política do Estado, tal como registrada nos jornais, era impenetrável para os turistas. Numa situação de alinhamentos e realinhamentos, não havia princípios nem programas, somente inimigos ou aliados: a metáfora dos pinguins”.

Naipaul assegura que “era possível ignorar boa parte do conteúdo dos jornais, pois o entendimento da situação política não dependia de saber o nome das pessoas e dos lugares, assim como a habilidade que o país adquiriu no manejo do computador não decorria do conhecimento integral de nenhum programa. Os programas poderiam ser modificados ou abandonados, e os políticos poderiam desaparecer ou mudar de cargo muito rapidamente”. O país se movia pela dança da sobrevivência e “parecia um milagre que houvesse governo. Mas, com o crescimento da economia, a maioria das pessoas acreditava que elas próprias, ou alguém de sua família, tinham a possibilidade de chegar ao centro mais quente, onde estavam os políticos, o poder e o dinheiro”.

Os desentendimentos de todos os dias, a vida entupida de realidade — crenças e línguas que fazem a rotina dos mais de l bilhão de indianos —, podem sempre acabar beneficiando alguém mais próximo, especialmente se ocorrerem na noite em que alguns deuses dormem.

Inevitavelmente, a política reflete as turbulências de uma nação segmentada e regionalista, acostumada a pouca mobilidade social e comprimida entre tantos poderes rivais. Os nacionalismos — separatistas ou centralizadores — enfrentam-se todos os dias nas ruas e no parlamento. Neste, assiste-se a debates feitos aos gritos, tapas, arrancar de microfones, rasgar de documentos e arremessos diversos. E quando as sessões legislativas transcorrem com tranquilidade, terminam com barulhentos socos na mesa, em lugar de palmas.

Tudo meio cômico, meio sério, nessa nação surpreendente e explosiva. Mas nada jovial ou tranquilizadora para um país emergente que pretende liderar o mundo.

Paulo Delgado é sociólogo. Foi deputado federal.


Paulo Delgado
Paulo Delgado
Sociólogo, Pós-Graduado em Ciência Política, Professor Universitário, Deputado Constituinte em 1988, exerceu mandatos federais até 2011. Consultor de Empresas e Instituições, escreve para os jornais O Estado de S. Paulo, Estado de Minas e Correio Braziliense.

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