A crise dos privilegiados
Correio Braziliense e Estado de Minas – domingo, 11 de dezembro de 2011.
Ele diz que é indiano, mora nos Estados Unidos, acreditou em Obama, sua vida melhorou desde quando saiu do seu país, mas sabe que está cada vez mais desagradável a face humana da liberdade econômica. De um fôlego só, em palestra na Sorbonne, o economista Jagdish Bhagwati, da Columbia University, transita rapidamente de entusiasta a herege, quando fala a respeito do livre fluxo de capitais. O mais prestigiado defensor da globalização, várias vezes indicado ao Nobel de Economia, abre o coração e não esconde que está perdendo a paciência com os banqueiros que se opõem ao controle do fluxo de capitais.
São tantas as vantagens a respeito da liberalização do comércio mundial e do livre fluxo de pessoas que é possível dizer que estes são os principais fatores da melhoria da qualidade de vida em muitas sociedades. A globalização de pessoas e mercadorias muda a vida de muita gente, e de maneira rápida. Seja pela ampliação do consumo, que se oferece a um número cada vez maior de pessoas, seja pela possibilidade de imaginar coisas fora do comum. Nada disso, porém, é necessariamente beneficiado pela globalização financeira, cuja piscadela, operada no conforto de quem somente muda a direção do seu investimento, destrói países inteiros. O que está havendo no mercado financeiro se parece muito com a cobiça da guerra, a mais violenta realização das leis da economia.
Numa época de alta conectividade, só a má política explica que a mobilidade do capital não tenha relação com as leis que moderam o fluxo das mercadorias e das pessoas. Afinal, o dinheiro é um instrumento destinado ao mundo das trocas e deve ser domado para operar a serviço das nações, e não contra elas.
Jagdish Bhagwati é um dos mais ardorosos, reconhecidos e capazes defensores da internacionalização da economia, mas jogou parte da toalha. Cada vez mais compartilha com seu colega, Joseph Stiglitz, Prêmio Nobel e também professor em Columbia, a ideia de que o sistema financeiro é fomentador de desigualdades. E, se a desigualdade não diminuir, a propensão às crises — talvez mais agudas e não apenas econômicas, sobretudo políticas — permanecerá muito alta. Enquanto a globalização da economia real, comercial e industrial, opera para resgatar milhões da pobreza nos países emergentes e faz do Brasil um exemplo de mobilidade social, o desregrado desenvolvimento do setor financeiro trouxe consigo um forte aumento da desigualdade. Altos salários e bônus esplendorosos tornaram gigantesca a atratividade do setor financeiro em relação à indústria, ao agronegócio e às demais atividades mais assentadas na realidade.
Os incentivos para o exagero são muito altos nesse líquido, quase etéreo mercado. “Menos excesso e mais acesso” é o mantra atualmente entoado pelo economista indiano. Para Bhagwati, a própria garantia da viabilidade de longo prazo, assentada na legitimidade do capitalismo, depende de um aumento das possibilidades de mobilidade social (mais acesso) e de uma canalização de parte dos gastos supérfluos de consumo nos investimentos em setores frágeis da sociedade (menos excesso). No primeiro caso, são necessárias, basicamente, políticas de democratização do acesso à educação de qualidade. No segundo, o que se espera é algo próximo ao movimento filantrópico de Bill Gates e de Warren Buffet, os milionários que procuram manter a cabeça tão recheada de valores quanto os bolsos.
É a bonomia do consumo e a orgia financeira que estão quebrando os países ricos e construindo esta nostalgia do futuro, que movimenta sonhos de cassino ao preço da alma de um banqueiro, o fomentador de débitos. Se o mundo são países, os países são regiões. Não é possível proibir que as pessoas se movimentem e mudem dos lugares onde passam aperto. Mas se o dinheiro faz isso, usando leis da agiotagem, esta circulação financeira não faz o mundo melhor. Para a maioria, esta é uma invenção improdutiva e inatingível. Mas quando muitos, especialmente os governos, deixam de ver a necessidade de vincular o dinheiro à realidade, e são por ele subjugados, quem controlará a farra de poucos? Cria-se o estímulo para que fiquemos abstraídos da vida real e abandonemos as tarefas da economia produtiva. Ou seja, para a maioria dos que sonham com enriquecimento fácil, seu teto parece baixo. É aí que são capturados pela especulação. A elevação desse teto, estimulado pela ficção do crédito e construído pelos financistas internacionais, criou uma riqueza monetária apropriada pela minoria de especuladores, que deixou mais distante ainda a maioria dos sonhadores.
Desde a década de 1980, as maiores riquezas do mundo desenvolvido surgem da especulação e do sistema financeiro. São ágios sobre essa irrealidade que fazem as pessoas acreditarem que é a sociedade que está em crise, quando são os governos e a ciranda financeira que estão voando sobre a realidade.
A crise é também de confiança na autoridade. Quando chama de “medidas de austeridade” a decisão que prejudica o desenvolvimento da sociedade. Quando dá sinais de que tais medidas visam aplacar a crise dos privilegiados. Já é hora de colocar filosofia nas leis da economia: rico é quem enriquece a vida dos outros.
Paulo Delgado, sociólogo, foi deputado federal.