A idade das trevas
Correio Braziliense e Estado de Minas – domingo, 23 de setembro de 2012.
A viagem de um simpático Papa Bento XVI pelo Líbano, saudado por sorridentes mulheres mulçumanas vestidas com seu tradicional e ortodoxo xador – o traje da antiga Pérsia que virou a vestimenta do Islã – contrastava com a fúria que varre seus vizinhos, por conta de um filme iconoclasta, e pelo que corre por aí, uma fraude de péssima qualidade. Contrasta também com o comportamento irascível do Cardeal Joseph Ratzinger quando, antes de virar Papa, impôs sua particular interpretação da Bíblia à Congregação para a Doutrina da Fé da Cúria Romana, e se dedicou a vigiar e punir hereges entre os católicos, cometendo abissal injustiça contra o teólogo Leonardo Boff.
A chegada do Califa Perfeito Omar, sucessor de Maomé, ao Egito, para converter seu povo ao islamismo, produziu, diante da imensidão da cultura da antiguidade depositada no que restava da Biblioteca de Alexandria, um primor da lógica fundamentalista. Quando se deparou com milhares de papiros, filosofou: “Não existe mais que um livro verdadeiro; o Alcorão. Se os livros dessa biblioteca contêm coisas opostas a Ele, são ímpios e hão de ser queimados; e se dizem o mesmo que o Alcorão, são supérfluos e hão de ser queimados também”.
“Queimem a mim”, assim reagiu o escritor alemão Oskar M. Graf quando percebeu que seus livros não foram incluídos na lista dos autores banidos pelos nazistas. Milhares de livros foram queimados por toda a Alemanha, em fogueiras públicas com a participação de estudantes e autoridades. Somavam mais de três mil obras não recomendadas, de autores perseguidos, difamados ou proibidos pelo horror nazista que iniciava seu despropósito. O poeta Heinrich Heine, um século antes, parecia alertar para a catástrofe: “onde se queimam livros, acaba-se por queimar pessoas”.
No nascimento da Nova República, o mais longo período da democracia brasileira, o cineasta Jean-Luc Godard, viu sua versão polêmica da história de Nossa Senhora, no filme franco-suíço Je vous Salue, Marie ( Eu vos saúdo, Maria ) ser proibida pelo governo. Pouco tempo depois, sem haver ligação entre um episódio e o outro, certo pastor furibundo, quebrou uma imagem da Padroeira do Brasil em rede nacional de televisão, como estratégia de propaganda comercial na competição por fieis. Dos dois episódios considerados sacrílegos, o mais grave que se tem notícia, foi o rompimento do fervoroso e discreto Roberto Carlos, que defendia a proibição do filme, com o ardente e agitado Caetano Veloso, que estava convencido que é proibido proibir e liderou o protesto contra o governo. Do pastor provocador, ninguém mais ouviu falar.
Aceitar que um livro, filme, vídeo, poema ou charge justifique a cólera de uma religião, liberando seus membros para a violência e a injustiça, é recusar a vida em sociedade e passar a mão na cabeça da mais primitiva e perigosa forma de tirania: o obscurantismo fundamentalista. Ao tornar-se tão dessemelhante do que pregam os profetas Confúcio, Buda, Abrahão, Cristo e Maomé, pela manipulação da boa fé dos seus seguidores, o fanatismo permite que, da idade média aos tempos atuais, ainda seja possível, pelo choque intolerante de culturas, interromper o caminho do mundo para o progresso científico e a cultura racional e democrática que lhe deu prosperidade.
A polarização entre o Islã, que são vários e nem todos fanáticos fundamentalistas como atestam os próprios muçulmanos, e o Ocidente – que ainda se guia pela péssima tradição de querer traduzir poder econômico e militar como superioridade moral – não é a melhor maneira de resolver os diferentes caminhos para nossos destinos como seres humanos. Mesmo sem deixar de procurar entender quais interesses materiais estão por trás das hostilidades religiosas, é preciso não ceder à facilidade que é justificar o ódio ao outro exclusivamente como forma de manifestação política. Os níveis de sofrimento e violência no mundo não deveriam ter na fé uma das suas formas de expressão, como é na história de praticamente todas as religiões.
A facilidade de disseminação de bobagens pela internet é proporcional à facilidade de sua assimilação por aqueles que, desprezados e usados pelos seus governos e líderes como massa de manobra, sentem que ter a fé ofendida, é ver machucar o último esteio de honra que um desesperado tem. Nesse caso, um filme ou um livro são somente pretexto para incendiar pessoas e com a fumaça esconder quão tosca são as tiranias e os governos manipuladores da boa fé do povo.
Uma grande parte do tempo do mundo é gasta com mal-entendidos. Mas fazer da religião a porta-voz do absurdo é o maior dos disparates. Leva-nos, apesar de todo o progresso, de volta à idade das trevas.
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PAULO DELGADO é sociólogo. Foi deputado federal.