Pronunciamento do Deputado Paulo Delgado
O SR. PAULO DELGADO (PT-MG. Pronuncia o seguinte discurso) – Sr. Presidente, Sras. e Srs. Deputados, registro, nos anais da Casa, o inteiro teor da entrevista concedida à jornalista Maria Lima, do jornal O Globo , publicada no dia 26 de junho de 2005.
ENTREVISTA A QUE SE REFERE O ORADOR
A publicidade levou a nossa alma
Jornal O Globo – O País – Maria Lima – Domingo, 26 de junho de 2005 – pág. 8.
Chamado de embaixador pelo seu livre trânsito no meio diplomático, o decano da bancada do PT, o mineiro Paulo Delgado (PT-MG), fala o que pensa dos erros do partido, mas é um fiel cumpridor da disciplina partidária. Professor de comunicação, está no quinto mandato, foi constituinte e ajudou a fundar o PT junto com Lula. No discurso de posse no ministério, o hoje deputado José Dirceu disse que Delgado era sua “consciência crítica”. Desde o início da década de 90 defende a abertura do partido, foi convidado para ser embaixador de Fernando Henrique Cardoso e nesses dias de caos no governo e no Congresso, tem sido chamado por embaixadores para acalmá-los sobre a crise. Foi da Comissão de Relações Exteriores em quatro mandatos e hoje exige que o PT explique todas as acusações que envolvem o partido. Relutou em dar a entrevista, porque teme agravar a crise interna.- Eu critico mas não renego. O PT é um filho, não meu pai. Confio que o partido vai explicar tudo – diz.
O Globo – Você é um dos fundadores do PT. Como analisa agora a quebra desse sonho, do paradigma da moralidade petista, do sonho de uma geração?
Paulo Delgado – Vou tentar ser cuidadoso pois, entre bombeiros não se pisa na mangueira. O PT pode ter cometido um erro, mas tenho certeza que não cometeu um crime. Nossa história de crítica a tudo quando fomos oposição, considerando nos outros qualquer erro como má fé ou crime, acabou dando nisso. Os deuses quando morrem, voltam como doença. Muito do que fizemos era considerado certo mais pelo vigor da decisão do que pelo seu próprio conteúdo. Muitos dos que acusamos foram absolvidos pela Justiça. E hoje, por ironia, o PT precisa -mas parecemos não merecer – do beneficio da dúvida. Só a verdade nos salva, porque fica em pé por si só.
*Como a crise envolvendo o primeiro governo do PT chegou a esse ponto?
Paulo Delgado – O problema vem desse modelo de gestão, do governo de coalizão que se tornou a característica da Nova República, em que se faz a partilha do Estado, entre os partidos aliados. Não tem sentido que a empresa que cuida da correspondência do povo brasileiro (Correios) tenha que ser dirigida por um partido político, ou que uma hidrelétrica ou a Petrobrás sejam dirigidas por partidos. Não é possível que para apoiar o governo o partido tenha que comandar uma parte do Estado. O governo de coalizão em tudo, não tem controle sobre nada do Estado.
*Esse fatiamento do controle das empresas públicas cria os focos de corrupção?
Paulo Delgado – Na América Latina dois são os principais fatores de corrupção: burocracia e concentração econômica. Outro é a inconsistência doutrinária das alianças políticas. O fator de estabilização do nosso governo não contém os símbolos de mudança para os quais o povo votou no PT. Essa dessintonia entre a estabilidade política e o desejo de mudança, é que nos enfiou no sistema que dizíamos combater.
*A máquina do governo petista virou uma máquina igual a dos outros partidos?
Paulo Delgado – Não. O problema é que nós revelamos um certo limite na capacidade de gestão que é uma tradição da esquerda. A esquerda tem mais tradição de tomada de decisão do que de implementação de programas e projetos. Quando você chega no poder e é obrigado a construir uma base parlamentar que não contém os símbolos de mudança que o elegeram, os fatores de frustração são maiores do que os de admiração. Quando nós não enfrentamos a estrutura fisiológica do Estado, e aceitamos o jogo nesse terreno, o PT perdeu a força para fazer as mudanças. No primeiro ano nós exaurimos a liderança de Lula sem modernizar o Estado . Pelo contrário. Ressuscitamos velhas oligarquias, deixamos políticos secundários usufruírem de nossa credibilidade imaginando manipulá-los.
* Quais problemas estruturais foram agravados?
Paulo Delgado – Hoje somos o segundo país do mundo com mais número de ministérios. Só somos menores que a Índia, que tem 40. Nenhum país desenvolvido, com exceção do Canadá, tem um número tão grande de ministérios, mais de 15. Nós levamos ao extremo o tamanho da máquina da composição política.
* Lula não conseguiu vencer essa estrutura? Ele se rendeu a ela?
Paulo Delgado – Eu acho que nós deveríamos ter enfrentado como a primeira medida a ser tomada. Retirar da composição política a partilha do estado, enxugar a máquina e ampliar a força do funcionário de carreira. Com isso diminuiria os elementos de barganha e encerraria a quinta República (iniciada com Sarney). Não havia necessidade do pragmatismo da base homogênea, sem compromisso programático.
* Qual seria a alternativa?
Paulo Delgado – Se nós tivéssemos construído uma base social democrata de centro esquerda certamente teríamos mais capacidade parlamentar. A partir da negociação caso a caso com sólidos projetos de modernização da administração pública, teríamos amplo diálogo com os progressistas e democratas do Congresso. Jogamos fora 53 milhões de voto para nada no primeiro ano.
* O que afastou o governo dos partidos de centro esquerda?
Paulo Delgado – Só havia elemento de barganha, de cargos e funções. Não havia elemento de negociação substantivo na relação com os partidos de princípios, que trabalham com programas de projetos. Nosso governo agravou o deslocamento de poder da política para a economia financeira construindo uma estrutura independente na moeda e no crédito. Mantivemos a Fazenda Nacional sem força para suportar a demanda comercial e industrial do Brasil produtivo.Hoje o Copom é a velha Sumoc (Superintendência da Moeda e do Crédito) ortodoxo e sem criatividade com reuniões mensais. Você imagina uma pessoa fazendo exame de sangue todo mês? Ou é para lucro do laboratório ou o sujeito está doente mesmo.
* Esse poder paralelo da equipe econômica gerou mais um foco de atrito na base?
Paulo Delgado – Atrito e frustrações . Por isso que nosso governo agrada mas não satisfaz. Ele pode até ter uma opinião pública favorável pelas características do presidente, mas nunca vai satisfazer ao sentimento que o País tinha do que seria o petismo no governo. Enquanto a variável de ajuste da economia forem os juros e não o crescimento econômico, não tem fator de ampliação da base do governo para os setores mais progressistas e o Brasil futurista. Os setores mais progressistas estão fora do processo de gestão do Estado. Como o Congresso precisava continuar funcionando era preferível buscar alianças políticas domesticáveis e subalternas que não estivessem interessadas nos programas de governo.
* Mas interessadas em nomeação e cargos?
Paulo Delgado. Isso. Agravado pelo fato de que nosso governo tem uma característica anti-parlamentar. Está sempre incomodado em sofrer influência do Parlamento. Não quer dialogar, quer pontificar sobre o Congresso. Tem uma compreensão insuficiente da harmonia e da independência dos Poderes. Embora seja o mais acabado produto da política democrática do País nos últimos anos nós, contraditoriamente, não contribuímos para aperfeiçoar o Brasil político ao chegar ao poder federal.
* Essa falta de apetite do presidente Lula em negociar com o Parlamento agravou a crise?
Paulo Delgado- A publicidade levou a nossa alma. O PT e o governo imaginaram que isolando a economia da política, bastava entregar a política á publicidade. A partir da idéia de que a publicidade ostensivamente vai se imiscuindo em tudo, em estar explicando e justificando tudo, também criou uma ilusão no governo, de que bastava divulgar como positivo que seria visto como positivo. Tem uma formulação do Bobio que o PT conhece mas esqueceu que diz: “Tudo é política, mas a política não é tudo”. A publicidade na democracia também tem de ser objeto de fiscalização e nem tudo na vida devia virar propaganda, ainda mais do Estado. O PT viveu isso desde o inicio. Antes da posse, o presidente Lula recebeu um recado. E não soubemos desarmar esse roteiro preparado para nós, que é de ficar sempre entre o ridículo e a inveja. No célebre episódio do Romanée Conti, quando foi dito aos petistas duas coisas. Primeiro o recado a nós dirigentes partidários: se vocês tem língua afiada tenham rigidez de conduta, pois deve ser austera a vida de censor. O segundo recado foi dado ao Lula: você pode governar o meu país, mas não deve mexer na minha adega. Recebemos um recado moral e um recado de classe.
* O PT não compreendeu isso?
Paulo Delgado – Não. Não soubemos. Pois continuamos indiferentes à opinião dos outros sobre nós. A crise que existe no PT é porque? O guardião da virtude tem de ser virtuoso.
* Desrespeitar essa máxima provocou a crise de credibilidade do PT?
Paulo Delgado – Esse é o princípio que deve reger a política de um partido de esquerda, um partido popular. O PT era o crítico feroz do comportamento dos outros, ele tinha que ter o mais austero dos comportamentos. Afinal fomos nós, que no presidencialismo, criamos o “Governo Paralelo”. Senhores da competência de tudo e de todos, transformamos a informalidade e a improvisação em incompreensível política.
* Faltou austeridade no PT governo?
Paulo Delgado – Eu diria o seguinte: é difícil compreender que o censor passa a ser censurado. Que o guardião da virtude não seja virtuoso. Isso voltou como doença, como disse lá atrás. Não sei se o povo se voltou contra o PT. Será? Acho que é um cipó de aroeira no lombo de quem mandou dar.
* A disputa personalista de políticos paulistas tem sido constante foco de problemas para o governo Lula?
Paulo Delgado – Este foi outro fator que nos afastou da centro-esquerda. São Paulo tem uma forma bem primária de se impor na política brasileira. Primeiro gosta de se impor por personalismo, e acho que personalitite é um fator de desestabilização política Na democracia, personalismo é uma forma de imaturidade política. Como São Paulo é muito sólido economicamente, seus acertos políticos são impostos aos partidos sem que suas personalidades – sempre acima dos partidos – percebam que são objetos de desejo de interesses corporativos de todo tipo, legítimos ou ilegítimos. Minas Gerais, por exemplo, um estado mais modesto sabe da importância política da obtenção de recursos. Os conflitos em São Paulo são fortemente intra elites, em todos os partidos e no PT não é diferente. O que nós temos visto é um conflito da elite do PT em São Paulo. Esse conflito se nacionaliza e passa a influenciar a política brasileira, nos afastando do PSDB e fazendo da contra-política a base da competição e do discurso mobilizador de apoios.
* Como você avalia o papel da oposição nessa crise?
Paulo Delgado – Se a oposição tem hoje um pouco mais de força, foi por fragilidade teórica e doutrinária do PT que criou na Câmara o líder da minoria, que não existe no presidencialismo. E imobilizou o Congresso por um ano com o projeto personalista da reeleição das mesas. Me parece que a oposição tenta restaurar os elementos de decomposição que produziram a vitória do PT. Aí nesse ponto ela tem que tomar cuidado com o que chamamos na política acadêmica de “cesarismo regressivo”. Eles querem voltar á situação anterior, só que ao fazer isso, a imagem que vai aparecer no espelho é a deles. É legítimo o desejo de querer mudar o governo periodicamente no período eleitoral, inaceitável é querer destruí-lo.
* O que você acha bom para o Brasil, um líder carismático ou um profissional?
Paulo Delgado – As eleições são sempre campo fértil para os carismáticos e todos os candidatos se vestem assim, mas só se governa com profissionais.O presidente Lula com essa reforma pode mostrar que quer ampliar a força dos profissionais no seu governo.
* Para isso ele tem que se distanciar mais do PT?
Paulo Delgado – Um outro fator de surpresa em alguns casos é essa fragilidade doutrinária e teórica do PT que apareceu no Governo. Nós ficamos conhecidos com o partido das grandes formulações, dos grandes projetos. Não tem sentido nós não conseguirmos formular de maneira adequada os desafios ou mostrar pouca consistência ou profundidade na análise e enfrentamento dos problemas. O presidente Lula pode estar com a dúvida da esquerda européia. Na Itália , o governo D’alema se articulou mais pela esquerda, perdeu a reeleição e foi substituído pela direita. O Mitterrand se articulou mais pela direita, perdeu a esquerda mas ganhou a reeleição. O governo do PSOE se envolveu em corrupção, perdeu o poder e depois voltou por um fator externo, que foi o terrorismo na Espanha. E hoje temos o exemplar governo do Zapatero…
* Então a alternativa que você coloca para o Lula é ele se afastar da esquerda para conseguir a reeleição?
Paulo Delgado – Claro que não. Mas acho que os dilemas do PT e do governo estão entre o Mitterrand e o D’alema. E dentro do próprio PT temos um pouco de tudo.
* Essa semana você criticou os que voltaram a falar em luta armada e ditadura. Você vê clima de conspiração e golpe?
Paulo Delgado – Política com emoção você costuma falar daquilo que te falta. A luta pela redemocratização brasileira foi feita predominantemente pelos brasileiros que não pegaram em armas. Então não devemos querer criar uma casta especial dos que pegaram em armas. Inclusive porque o símbolo é muito negativo hoje. O lema que o PT deve defender para a América Latina é quanto mais crise mais democracia . E na democracia é mais importante responder do que reagir. O PT tem de esclarecer e responder a tudo que está ocorrendo. Não cabe o discurso da conspiração e do golpe. Nós somos, aliás, como partido, os maiores beneficiários da democracia brasileira, atual, que já é o mais longo período democrático em toda a república.
* O que você diz nas ruas para defender o que Lula defendeu em quatro campanhas?
Paulo Delgado – Que é preciso preservar a verdade dos fatos, saber distinguir fato e notícia. Reconhecer o problema. A honra é a visão que o outro tem de você. Se o PT está sendo visto assim, o PT tem que admitir que está sendo visto assim. Isso não é política só. E élan, pudor. Essa crise fere mais o petismo do que os petistas. Portanto, mesmo que seja infâmia, essa crítica atinge mais o petismo que o PT, e espero que saibamos responder a tudo.
* A volta do discurso belicoso, das galeras do deputado Chico Vigilante essa semana na volta do José Dirceu, não atrapalha ainda mais?
Paulo Delgado – Não é o momento de claque e confronto. Não acho que você tenha necessidade de dizer menos das coisas, mas também não tem necessidade de dizer mais que o necessário. Nenhuma atitude conflitiva permite melhorar a reflexão sobre o que ocorre. Não é o momento nem de aplauso nem de vaias. É como uma sala cirúrgica. Tem que aguardar o que vai acontecer. Confiar nas instituições, evitar manipulações, e depois, pensar como Barão de Itararé: “Tudo seria fácil se não fossem as dificuldades”.
* Você disse que a publicidade roubou a alma do PT. Como tê-la de volta?
Paulo Delgado – Não perder de vista algo como: a ética sempre manifesta o ridículo da estética.
FIM
Era o que eu tinha a dizer.