Touro Sentado

Touro Sentado

Correio Braziliense e Estado de Minas – domingo, 14 de Julho de 2013.

São muitos os vícios e suas origens. Um muito comum é querer ver o mundo pela magia que pode existir nas coisas mais do que por processos reguladores e determinados. Outro é imaginar que condutas de aversão são virtudes e contribuem para diminuir a superfície da terra. Explicações pelo hábito, combinadas com hipocrisia e manipulação, têm sido a forma cotidiana como governos pensam manifestar poder diante de fatos internacionais.

Os últimos dias foram espetaculares em sagas e aventuras contadas de maneira a nos fazer crer que minorias tecnologicamente atrasadas são, por isso, moralmente superiores. E, assim, são, por maldade, confrontadas e subjugadas continuamente pelo apetite incontrolável dos imperialistas. É como se as vítimas continuassem sem poder fazer outra coisa senão reclamar e sucumbir. No fundo parecem querer se misturar à bela e melancólica história de Siouxs e Cheyennes retirada do pungente relato de Dee Brown sobre a destruição dos índios da América do Norte, em Enterrem Meu Coração na Curva do Rio.

Um espião americano arrependido, de posse de alguns laptops surrupiados da Agência de Segurança Nacional dos EUA foge para os portões da China e aparece vagando num aeroporto em Moscou. No mesmo momento um presidente sul-americano decola de lá e tem seu avião desviado para Viena porque a França proíbe o Falcon 900 EX, de fabricação francesa, de sobrevoar seu território, no que é acompanhada por demais países europeus. Motivo: a possibilidade de dentro dele, de carona ou resgatado, estar o intrépido espião foragido que descortinou “segredos” que forçaram os mandatários a expressar “indignação”. O segredo nesse caso é a revelação do segredo e a indignação é protocolar, como até o Vaticano sabe.

De matar foi a ambígua posição do presidente da Rússia, ele mesmo um ex-espião, de conceder um meio asilo ao seu colega de profissão, abandonando-o em um aeroporto de Moscou sem permitir que fixasse residência no país, muito menos continuasse suas atividades contra-conspirativas em território russo. O que se seguiu foi eletrizante. A nação mais poderosa da terra, acusada de espionar todas as pessoas, em todos os países do mundo, em ações clandestinas e ilegais, não foi capaz de identificar em um avião de doze lugares o perigoso desafeto, transformando tudo em discursos emocionantes e emoções à flor da pele. Até o Brasil, que adora grampear, ouvir e vazar conversa alheia e fez disso um esporte judicial ilegal, ao invés de preferir ser espirituoso e informado, fez-se intimidador. E simpático ao incoerente presidente boliviano, que viu violação de soberania na limitação do voo de seu avião.  O mesmo que o ano passado, praticando sua diplomacia ativa para cima do vizinho agradável, mandou cães farejadores entrarem no avião do nosso ministro da Defesa para procurar o senador oposicionista que o Brasil concedeu asilo, mas deixa apodrecer na embaixada em La Paz, para ser condescendente com um presidente que não aceita asilo para inimigos.

Países que confundiram democracia com atraso tecnológico terão que se contentar em entrar no debate sobre segurança mundial depois da engenharia montada. Até lá terão que conviver com a onipotência virtuosa de um Google que tem como orgulhoso lema um naïf “Não seja mau”. É a versão da pretensão americana de ser o bom xerife do mundo, disposto a encolher o espaço que separa as áreas integradas  das que não são. Como explicitado, entre outras vezes, em 2003, por Thomas Barnett, então no Colégio de Guerra Naval americano, com seu “Novo Mapa do Pentágono”. A integração que traz a segurança ocorre por cada vez maiores fluxos de comércio, de finanças, de ideias, mas primariamente por interconectividade de informações. É nisso que acredita quem quer ter influência e é nisso que se investe.

Da internet ao GPS, mexeu ali, mexeu nos EUA. Empresas, domínios, servidores são, praticamente, todos norte-americanos. E a mistura de agentes do mercado com políticas públicas de defesa é total, direta ou indiretamente. São crias do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), de Stanford, da Agência de Projetos de Pesquisa Avançada de Defesa (DARPA) etc. Sem as universidades de pesquisa americanas e as agências ligadas ao Pentágono seriam inconcebíveis o impulso inicial e o desenho teórico que protegeu e nutriu os projetos que um dia viriam a pulular na internet.

Somente a Rússia, China, Europa e a Índia têm alternativas operacionais ao GPS americano. Se o Google Earth mostra gratuitamente o mundo com precisão e iPhones sabem com precisão cirúrgica onde você está, não é preciso muita imaginação deduzir o que está disponível para uso militar ou corporativo. Até agora, desnudar o analfabetismo cibernético da América Latina é o maior feito do espião.

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PAULO DELGADO

Paulo Delgado
Paulo Delgado
Sociólogo, Pós-Graduado em Ciência Política, Professor Universitário, Deputado Constituinte em 1988, exerceu mandatos federais até 2011. Consultor de Empresas e Instituições, escreve para os jornais O Estado de S. Paulo, Estado de Minas e Correio Braziliense.

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