Raízes da Radicalização
Correio Braziliense e Estado de Minas – domingo, 1º de Junho de 2014.
Domingo passado, a crise política do continente europeu não deixou espaço para dúvidas. Na Grã-Bretanha, 27,5% dos votos foram dados ao Partido pela Independência do Reino Unido. Na França, 25% dos eleitores escolheram a Frente Nacional. Os dois partidos constituirão as maiores bancadas da segunda e terceira forças políticas do Parlamento Europeu. Ambos são partidos conservadores que querem o poder da União Europeia reduzido, ou melhor, extinto. São bancadas que irão para Estrasburgo não para representar seus países, já que não aceitam a própria legitimidade existencial da instituição. Irão, também, de costas para seus governos nacionais, pois não concordam com sua legitimidade momentânea.
A eleição mostrou o avanço da convergência de grupos que não se identificam mais com o pacto político atual. Essa convergência ocorre na esteira do descrédito generalizado que acomete os partidos que garantem e gerem o pacto estabelecido após a II Guerra. Essa situação é particularmente aguda na França. O UMP (União por um Movimento Popular) do ex-presidente Sarkozy e o PS (Partido Socialista), do presidente Hollande, que representam, respectivamente, a centro-direita e a centro-esquerda tradicionais da República, estão degringolando.
Os grupos que compõem o PS e o multifragmentado UMP revezam o poder na França desde sua libertação do nazismo. Por mais que debatam ferozmente sobre o sexo dos anjos para que fiquem marcados como diferentes, cresce a percepção de que são iguais. E, de fato, são parte do mesmo pacto político e estão restritos a um plantel de ações previstas dentro dele. O avanço da União Europeia criou um centro político estável, sem apetite, que agora é ameaçado pela voracidade dos partidos radicais.
Em abril de 2002, quando a Frente Nacional conseguiu sua primeira eleição bem-sucedida, levando seu fundador, Jean-Marie Le Pen, para o segundo turno da disputa presidencial, o país parecia ter levado um choque de horror que impulsionava à ação. Pois bem, rapidamente uma situação de clamor nacional foi criada para provar a marginalidade da Frente Nacional. O adversário de Le Pen no segundo turno, Jacques Chirac, recebeu votos de eleitores de todas as tendências e derrotou Le Pen com um recorde de 82% dos votos. A Frente Nacional era motivo de ojeriza. A França tinha vergonha dela e o próprio eleitor da legenda não assumia seu voto. Le Pen havia chegado ao segundo turno, sem que nenhuma pesquisa captasse tal movimento. No início da década seguinte, esse movimento subterrâneo, intestinal – repudiado, rechaçado e ignorado pelos poderes institucionalizados – tomou um banho de loja de interior, atacou a globalização, o livre comercio, as elites, movido pela doença do discurso (mania que une direita e esquerda em todo o mundo) – envernizado pelo rosto ariano de Marine Le Pen, a caçula de Jean-Marie.
Ela foi capaz de reconciliar a extrema-direita francesa com públicos que poderiam até ter empatia pelas bandeiras nacionalista, protecionista e anti-establishment, mas que ficavam em dúvida sobre em que medida outros pontos da ideologia da Frente não eram hostis a eles também. Sendo assim, o voto da Frente Nacional continua sendo um voto de classe operária, envelhecida, pessimista e passando aperto. Um voto que acompanha passo a passo a marca do processo de desindustrialização para uma nova configuração produtiva, especialmente no interior do país. Mas ele tem conseguido ser também, de forma crescente, o escolhido dos jovens e das mulheres.
A vitória da Frente Nacional no domingo passado estava largamente anunciada pelas pesquisas, mas, diferente do ocorrido em 2002, não houve mobilização na sociedade francesa para impedir que isso ocorresse. Em parte, o choque pelo avanço da extrema-direita causou dessa vez um desânimo paralisante. Por outro lado, a verdade inconveniente é que Marine Le Pen tem tido sucesso em tornar sua agremiação palatável.
Tornar-se palatável e próximo de alguns poderes constituídos é fundamental, pois o próprio sistema eleitoral francês é desenhado para impedir a representação de partidos “avulsos’, não republicanos. Ironicamente, a Frente Nacional só entrou no sistema nacional por um estratagema da esquerda francesa. Na eleição de 1986, o modelo de escrutínio foi alterado de maneira oportunista por Mitterrand para evitar uma derrota acachapante do seu PS e também para promover uma dissolução das forças de oposição à direita. Mitterrand viabilizou a entrada de Jean-Marie Le Pen na Assembleia Nacional para ele ser uma pedra no sapato da direita tradicional.
A história dá voltas e hoje o renegado programa conservador tem fortíssima ascensão justamente sobre a classe operária que era reduto do cada vez mais convencional Partido Socialista.
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PAULO DELGADO é sociólogo.