Armadilhas da Fé
Correio Braziliense e Estado de Minas – domingo, 8 de Fevereiro de 2015.
A vida no Oriente Médio tem sido uma cansativa sucessão de cerimônias fúnebres. A escala de conhecimentos trágicos que produz sobre a natureza humana é mais facilmente interpretada pela combinação de oligarquia, teocracia, plutocracia, militarismo. Com um papel relevante para a religião, cuja função, como ocorria na Idade Média com o cristianismo, era ajudar a pessoa a se perder. Não fosse a Reforma Protestante e a liderança social de alguns Papas, o Ocidente provavelmente demoraria a decidir a usar a cultura e a razão, mais do que a fé, para transcender os seus conflitos. Que ainda não acabaram.
Ali tudo passa dos limites. A afetação sem afeto, impulsionada por todo tipo de ingratidão e culpa que brota da mistura de verdade e mentira, facilmente assimiladas pela ideologia. Sem um mínimo de entendimento partilhado que possa diminuir a combinação de riqueza, miséria e ditadura que ali prospera. Se fúria e ilusão andam pregadas aos processos políticos nunca haverá descanso.
Quando a derrubada de regimes que nasceram do povo árabe de 2011 para frente se encontrou com os regimes derrubados pelas ocupações estrangeiras da década anterior, o espaço da barbárie cresceu. Esse encontro que ocorreu com precisão geográfica e espiritual no espaço entre Síria e Iraque, ocorre com mais ou menos força do Magrebe ao Oriente Médio. Com grupos terroristas financiados por interesses regionais e mundiais diversos se saindo como a parte mais organizada da desordem instalada.
O desenrolar histórico que levou a esse estado, onde instituições ruins foram substituídas por fragilidades que deram vazão à barbárie, mostra que as revoluções incutidas não são arriscadas, mas sim imprevisíveis. O entusiasmo terminou e cedeu espaço a um destino traçado por decepções. A instabilidade que se espalhou flertou com todas as possibilidades, mas acabou invariavelmente cativa da violência antidemocrática. Falsa esperança se acomoda melhor em ditadura.
Quebras institucionais muitas vezes trazem novidades bem-vindas. Há equilíbrios que claramente não evoluirão para algo melhor. E uma vez quebrados, possibilitam rearranjos mais positivos. Por outro lado, não há essa garantia. Mesmo assim, apostar em evoluções institucionais – ao invés de revoluções – traz uma noção de administração morosa demais da realidade nesse mundo imediatista. Quando há instituições modernas sólidas o suficiente, é possível brincar de revolucionário e ainda cooperar para tangenciar a evolução orgânica da realidade. Por outro lado, horrores múltiplos de uma sociedade global que se diverte com a psicopatia – presente em todos os países – liberam o caos antes que as instituições venham abaixo.
Para além do mundo árabe, o poder muçulmano sobre o oriente médio há décadas se divide pela tensão entre o Irã xiita e a Arábia Saudita sunita. O fato de que ambos lutam contra os terroristas do ISIS não atenua a enrascada em que colocaram a região para protegerem seus regimes e propagarem influência externa. A possibilidade de melhorias reais na região passa por um entendimento entre ambos. Mas as profundas suspeitas mútuas tornam mais provável um prolongamento interminável do caos.
O espetáculo de sordidez, encarnado no vídeo do piloto jordaniano queimado vivo na jaula, se sobrepôs ao drama do desespero humano presente naquele desempregado tunisiano que ateou fogo ao próprio corpo. Da autoimolação à imolação dos outros, o uso do corpo como mensagem política é mais compreensível do que tentar entender a transposição de amor e ódio, quando não há outro objeto de afeto do que o próprio corpo. Estranho é o fato de que as três religiões monoteístas daquela região sempre desconfiaram das fontes pagãs da liberdade mas, no fundo no fundo, se consolidaram preocupadas mais em controlar opiniões do que costumes. Cristãos e Judeus diminuíram a exigência de sacrifícios exemplares. Maometanos, continuam exaltados e sem paciência com ovelha extraviada.
Mas a desestabilização instaurada no mundo das autocracias árabes não feriu a autocracia em si. Laica ou religiosa, continua sendo a vencedora. Principalmente quando os regimes impostos por invasões inglesas, francesas, americanas, soviéticas só fazem os problemas locais se remoerem sem solução e os extremistas terem plataformas que remontam a um passado cada vez mais distante. Assim, há fanáticos na região querendo ajustar as contas com o que se decidiu após as duas guerras mundiais e mais para trás ainda. Um inverno frio de manipulação da moralidade e do senso de justiça. A armadilha da fé e da etnia alçada a questões de vida ou morte e financiadas por estrategistas da desordem.