Violência e capitalismo na Nigéria
Estado de Minas e Correio Braziliense, domingo, 19 de Abril de 2015.
Entre o deserto do Saara e a savana do Sudão existe uma região onde cerca de cinquenta milhões de pessoas falam uma língua chamada hauçá. Língua franca nos mais importantes mercados e entrepostos das porções ocidental e central da África é usada majoritariamente por muçulmanos na fé e famosos por seus mercadores. Os hauçás conseguiram chegar a práticas agrícolas que iam além da subsistência, educaram-se em raciocínios comparativamente sofisticados e por isso suplantaram outros povos e dominaram vasta porção de terra. Apesar das mudanças politicas, o hauçá manteve seu status de língua franca, mas perdeu para o inglês e o francês a posição de língua oficial.
Nos últimos anos, uma expressão hauçá ganhou o mundo através das seções mais lúgubres dos noticiários. Boko Haram. Assim é conhecido o grupo terrorista que atormenta a Nigéria. O maior país africano em termos populacionais e econômicos é também o terceiro mais populoso da Commonwealth, logo após Índia e Paquistão. A língua inglesa manteve a posição de língua oficial após a independência, em 1960, no multiétnico país onde os hauçás constituem o grupo majoritário. Haram significa aquilo que é proibido ou pecaminoso em árabe e é termo difundido mundo afora por praticantes do islamismo. Boko é palavra que originalmente queria dizer “engodo”, alcunha atrelada por hauçás tradicionais ao sistema de ensino secular imposto pelos britânicos aos locais a partir do início do século XX. Ao longo do tempo, “boko” foi se tornando sinônimo de educação ocidental em geral, incluindo a escrita da linga hauçá em alfabeto romano.
A expressão Boko Haram mostra a amálgama entre nacionalismo étnico e fé importada. O islã chegou antes, mas, assim como a educação secular, também não é dali (aliás, o que é hoje de cada lugar de fato?). Todavia, o radicalismo islâmico teve ali, assim como em outras paragens, solo fértil para, deturpando os valores mais universais maometanos, interpor-se como uma palmatória do mundo que força o obscurantismo, oblitera a liberdade de viver e destrói o progresso. Primitivistas que levam seu proselitismo na ponta de um fuzil, os militantes do Boko Haram se tornaram especialmente infames por conta dos seqüestros perpetrados contra colegiais.
Na semana que passou – quando fez um ano do chocante seqüestro de 276 meninas de uma escola na cidade de Chibok – a Anistia Internacional divulgou relatório onde estima que duas mil mulheres e meninas foram seqüestradas pelo grupo desde o início de 2014. A isso se somam dez mil mortos e um milhão e meio de pessoas que tiveram que abandonar suas casas como conseqüência de violências perpetradas pelo grupo. A Nigéria, que soma avanços econômicos significativos nos anos recentes, vê-se refém da radicalização que cresce nas suas áreas onde o desemprego e a pobreza estão mais assentados. Se o terreno é fértil para o BokoHaram, deve-se muito à virulenta corrupção das autoridades sujas de petróleo.
O país que subiu para a posição de maior economia do continente após uma revisão do método de contagem do PIB em 2014, ainda tem mais de dois terços de sua população vivendo com menos de US$ 1,25 por dia, a linha de pobreza proposta pelo Banco Mundial. No entanto, a chance que os nigerianos têm de romperem essa linha é persistindo como sociedade fiel aos seus costumes, mas aberta ao mundo desenvolvido, como ocorre na porção norte da metrópole que a colonizou e legou sua língua oficial.
Ainda que a desigualdade de renda seja uma característica inerente ao capitalismo, uma vez que as taxas de retorno do capital tendem a superar aquelas de crescimento econômico nenhum outro sistema econômico operou tão rápida e eficazmente para elevar o padrão de vida de uma sociedade. Mas capitalismo bom é sinônimo de inovação, diversidade econômica com democracia e pessoas dotadas de ideias emancipatórias sem necessidade do fascínio regulatório do Estado.
Muhammadu Buhari, ex-ditador que tentou por diversas vezes voltar ao poder por vias eleitorais, foi eleito presidente da Nigéria em março. Será a primeira vez que ocorrerá transição democrática de poder no país. O fato de ser um muçulmano optante da democracia o escolhido pela população para lidar com os extremistas do Boko Haram é de certa forma bom sinal. Afinal, se de fato engodo é a forma de capitalismo que ainda impera na Nigéria, pecado maior é não permitir que a população avance, se reinventando e melhorando suas práticas. Como costuma se dar nas grandes democracias multiétnicas, a situação na Nigéria é um simulacro das disputas e aspirações do mundo atual.
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PAULO DELGADO é sociólogo.