Um mesmo horizonte
Correio Braziliense e Estado de Minas – domingo, 3 de Maio de 2015
Ninguém mais duvida que a principal relação política do século XXI será entre Estados Unidos e China. Só projeções catastróficas refutam essa sina. De toda forma, o que hoje aparenta caminhar por inércia, poderia nunca ter sido colocado em movimento. O amor Washington-Pequim é o “maior ato de criação desde Adão e Eva”, diz, de forma afetada, Kenneth Waltz. Distinto expoente da contemporânea teoria de relações internacionais, morto há um ano, Waltz ancorava sua razão na confiança em um modelo que mirava um mesmo horizonte. Desde os anos 1970, para gente como Waltz, era claro o balé iniciado a partir do convite feito pelo presidente Nixon para que a China se tornasse a grande dama dos salões da sociedade internacional. Nessa orquestração, o público e o privado se entrelaçam. E algumas figuras lançam luz às sutilezas da engrenagem.
Estudante, testemunha, participante, operador e arquiteto dessa valsa, Henry Paulson, o banqueiro americano tornado ministro da Fazenda sem nunca perder a alma de banqueiro, publicou há uns 15 dias seus pensamentos sobre a relação entre o seu Estados Unidos e o gigante asiático. “Negociando com a China” (Dealing with China, ainda sem edição brasileira) de Paulson é a versão 2.0 de “Sobre a China” de um outro Henry, o Kissinger. Os dois, talvez, sejam os principais exemplos dessa junção entre negócios e poder, relações públicas e privadas, que desenham o presente século. A mesma maneira como a China olhou no espelho o capitalismo americano e programou a forma de se ver refletida mais tarde.
São “corpos chineses com tecnologia estrangeira”, disse Jiang Zemin, presidente chinês, a Paulson em conversa sobre o extraordinário sucesso das nadadoras chinesas nas Olimpíadas de Barcelona. Essa junção humana e real buscada por líderes modernos da China em diversas esferas da vida do país era entusiasticamente facilitada por instituições como o Goldman Sachs, ícone dos bancos de investimentos onde Paulson trabalhou por trinta anos e do qual foi CEO.
“Trabalhei na Casa Branca durante minha juventude e já naquela época me encontrei com o presidente Nixon por diversas vezes, mas ainda tremia ao me encontrar com o secretário geral do Partido Comunista da China”, disse sobre seu primeiro encontro com Jiang Zemin no meio de um time de investidores que planejavam construir o Oriental Plaza. Esse conjunto de comércio e negócios na esquina da rua Wangfujing com a avenida Chang’an, as principais artérias que levam ao coração da capital chinesa, a Praça da Paz Celestial, é símbolo físico do avanço das reformas para cada vez mais perto do centro do poder.
Sintomaticamente, em sua primeira visita como secretário do Tesouro Americano pousou, antes de ir à Pequim, na cidade de Hangzhou, capital da rica província de Zhejiang, onde o governador local, um certo Xi Jinping, punha em prática uma bem sucedida estratégia de incentivos ao desenvolvimento da iniciativa privada. Era setembro de 2006 e Paulson assumira as rédeas da trinca de secretarias mais importantes do governo americano e cujo principal clamor a que se expunha era a questão da subvalorização da moeda chinesa. No mínimo roubam empregos americanos, bradavam seus opositores. Mas Paulson não batia de frente com isso. Ele queria continuar a fazer negócios com a China e sabia que era inegociável a rapidez do crescimento econômico alavancado pelos superávits acumulados na balança comercial. Paulson sabia que sua atuação era fazer o governo americano o principal parceiro da China. Ele queria, como homem público que era agora, que seu governo fosse parceiro e consultor das reformas chinesas da mesma forma que fez na época do Goldman Sachs.
Bem, hoje Xi Jinping é o presidente do país. E exerce a liderança com força e assertividade em prol de uma ambiciosa agenda de reformas. É criticado externamente por garantir que por mais amplas que sejam as reformas o poder do Partido Comunista nada se esmoreça, pelo contrário. Paulson concorda que é necessário que Xi aumente ainda mais seu espectro de poder para levar a cabo as reformas que deseja. Em dezembro de 2006, Paulson deu o pontapé inicial a uma série de encontros de alto nível entre os principais nomes da política econômica de EUA e China. Defendido por ele dentro da Casa Branca, os encontros bilaterais entre as autoridades de Pequim e Washington foram se expandindo a despeito das professadas resistências (sinceras e raivosas, ou dissimuladas e discretas) à ideia de um G-2.
De um país à margem do sistema internacional desde a Revolução Industrial, ao compartilhamento do poder mundial, a China é o que seus líderes decidiram.E essa contraditória estratégia foi levada à frente em parceria com gente como Paulson, Nixon e seu estrategista, Kissinger.
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Paulo Delgado é sociólogo