Civilização e Barbárie
Mantendo a tradição de descuidar do futuro a Argentina não consegue fazer o poder da sua inteligência influenciar o estilo da sua política. Terra de gente admirável, seus políticos mais hábeis não se desvencilharam do que os olhos de fora vaticinavam. “Vulcão subalterno, sem nome, dos muitos que aparecem na América: logo será extinto…essa grande falta de capacidade política que mantém seu povo inquieto, sem objetivo preciso, sem norte fixo, sem saber por que não alcança um só dia de repouso ».
Oscilando sempre entre duas forças opostas, ora erguendo-se na balança dos povos livres, ora caindo na dos despolitizados, a orgulhosa vizinha, vez por outra é obrigada a conviver com autoridades sem limite, a inteligência descuidada e a falta de responsabilidade de quem manda.
Desde 1845, “Facundo – civilização e barbárie”, biografia de Juan Facundo Quiroga, primeiro grande livro da literatura argentina, de Domingos Sarmiento, alimenta o debate político e literário no país. Logo na introdução afirma com ironia sobre a força da tradição: “matam-se homens, não ideias”. Pela maneira conservadora como se conduz a política na América do Sul morre o progresso por falta de ideias.
Juan Facundo Quiroga foi um caudilho argentino que está presente em todos os líderes políticos depois dele. Segundo o relato de Sarmiento, que foi presidente da República e herdou traços do que critica, “a sombra terrível de Facundo explica a vida secreta e as convulsões internas que dilaceram as entranhas de um povo nobre… Facundo não morreu; está vivo nas tradições populares, na política e nas revoluções argentinas.; em Rosas, seu herdeiro, seu complemento: sua alma passou para esse outro molde, mais acabado, mais perfeito; e o que nele era só instinto, iniciação, tendência, com Rosas se converteu em sistema, efeito e fim”.
Facundo rural, Rosas urbano, não importa. O que caracteriza o fenômeno político regional é a manifestação arcaica do uso do poder e da influência. E é impossível não associar à mais forte tradição sul-americana a presença de líderes para os quais a fonte de legitimidade do poder não é a soberania do cidadão, mas a capacidade de controlar sua vontade. E como temos “donos do povo” !. Perón, Getúlio, Fidel, Jânio, Fujimori, Collor, Menem, Cháves, Lula, Zelaya, Kirchner.
Talvez seja, então, o revolver tacanho e inconsequente das lavas ardentes de sua política que tornam a Argentina um dos maiores mistérios das Ciências Sociais. Cuja lógica sempre viu ali presentes os predicados necessários para fomentar a pujança de uma sociedade se contasse com políticos de racionalidade magnânima.
Mas não ! A Argentina, é daqueles países em que se cola a pecha de que estão muito aquém de seu potencial. E tal tristeza vem do fato de que o potencial é vislumbrado não apenas no futuro, o que dá ânimo, mas também no passado perdido, prisão de ansiedade. Um esdrúxulo caso de sociedade que se localizava entre as dez maiores rendas per capita do mundo no princípio do século XX e chegou ao século XXI, segundo o Banco Mundial, na 51ª posição.
A impressão é de um país cuja economia parou no meio do caminho. Em 1910 seu PIB per capita superava em 497% o brasileiro. Passados 50 anos a diferença caíu para 220%. Em 2010 já era apenas 49% maior. Se por uma frente, países que caminham muito lentos em direção ao futuro, como o Brasil, vão vendo a Argentina cada vez mais perto, Austrália, Bélgica, Canadá, Reino Unido e Estados Unidos, que dividiam a ponta com a Argentina lá em 1910, a vêm cada vez mais longe. Sendo que o pior posicionado entre eles tem um PIB per capita 363% maior do que o argentino. Por outra frente, são cada vez mais frequentes os exemplos de sucesso econômico que ultrapassaram com extrema velocidade o marasmo dos pampas. Eles crescem, seja pelo obsoleto petróleo que produz imerecidas riquezas, seja pela fabulosa adaptação ao modo de produção capitalista dos emergentes asiáticos.
Hoje eleitores argentinos decidirão quem governará mais uma vez o país. Daniel Scioli, marido de modelo, é o ungido do kirchnerismo, que pode cair diante de Mauricio Macri, magnata do Boca Juniors. Domingo passado, o último debate da campanha, escolheu um local simbolico dos problemas do país. A Universidade de Buenos Aires, espelho das contradições argentinas. Tendo formado dois prêmios Nobel de Medicina, um de Química e um da Paz não figura mais nem entre as cem melhores universidades do mundo.
É a desordem que entranhou nas instituições, continua a predominar na política da nossa região e está presente, mais uma vez, na sucessão Argentina.
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PAULO DELGADO é sociologo