O Servo Sofredor
Correio Braziliense e Estado de Minas. Domingo, 13 de dezembro de 2015.
A prosperidade dos maus é a aflição dos justos. Deus ainda não deu a palavra final a respeito da questão. Mas o conflito entre suas três religiões monoteístas – judaísmo, cristianismo e islamismo – vai, cada vez mais, envolvendo multidões. E fazendo, por caminhos diferentes, seu servo pacifista, amedrontado e sofredor.
Marine Le Pen. Que constrangimento passa a ser a imagem da política francesa no mundo. França que, incapaz de fazer cumprir a lei, pretende revogá-la. Mesmo vindo enviesada, o resultado do processo eleitoral frances retrata a declaração de derrota ante o mundo civilizado e democrático. O flerte da política com a fúria da fé, súbita e arbitrária.
A ojeriza francesa projetada no desajustado muçulmano troglodita é mero jogo de espelhos que reflete as dificuldades de ser demasiadamente humana, competentemente justa, democraticamente segura. Le Pen e ISIS, até que se parecem. A Le Pen é dado o benefício de estar numa civilização que lhe impõe freios. ISIS é o horror. Puro e simples. Le Pen é muito melhor, mas não por suas qualidades, e sim pelas qualidades da república da qual desgosta. Ela e seu grupo são melhores por conta da vanguardista civilização europeia que para dar maior espaço a muitos, restringiu o espaço de megalomaníacos e senhores de verdades egoístas. O crescimento de radicais da estirpe de Le Pen, na esteira da crise econômica e do avanço do terrorismo, pode arrastar a Europa para o campo do fanatismo.
As eleições regionais de hoje apontam o partido Frente Nacional, do clã Le Pen, como principal vitorioso. Que proporções exatamente sairão dos escrutínios ainda não se sabe, mas a consolidação da Frente Nacional como partido viável, aceitável, presidenciável, na opinião e – mais importante – no sentimento de pelo menos metade dos franceses está posta. Calcada na sagacidade com que Le Pen, a filha, lustrou a crispação do partido de Le Pen, o pai. Ano após ano, eleição após eleição. Embrenhando-se rincões adentro nas sombras das angustias daqueles que se sentem vítimas. Da globalização, do estrangeiro, da meritocracia, do sucesso alheio, da vida em geral.
O Cevipof, principal centro de estudos eleitorais da França, prevê que até um terço das regiões do país pode passar a ser controlado pela Frente Nacional a partir desta eleição. O degringolar dos partidos principais da República é parte essencial da narrativa. Grande parte dos políticos corrompe a democracia por estarem sempre se engalfinhando apenas, no fim das contas, pelas benesses do poder. E por mentirem a respeito de sua real capacidade de transformação. Nisso os partidos se igualam. Nessa brecha, os oportunistas, vicejam. Mas os números totais escamoteiam algumas questões importantes. O vigor da extrema-direita se dá sobretudo nas cidades muito pequenas. Nos grandes centros, os partidos tradicionais ainda vigoram. E dada a centralização política francesa, governar uma região é caixa de ressonância para bravatas.
Todavia, o caminho percorrido de ascensão da Frente Nacional é o tradicional. Nas últimas eleições regionais, em 2010, o território francês saiu das urnas tingido do vermelho do Partido Socialista. O qual cresceu no contravapor da reinante insatisfação contra o então presidente Sarkozy e sua agremiação de centro-direita, o UMP (hoje chamada Republicanos). Estava ali sacramentado o prenúncio da vitória socialista sobre Sarkozy na eleição nacional dois anos depois. O problema é que os Socialista ganharam com Hollande, o insosso. Assim, nessas regionais, a França voltará quase que por completo à coloração azul, associada ao centro e à direita.
No dia de hoje, se a Frente Nacional ganhar uma região importante que seja, será um grande passo. A jovem Marion Maréchal-Le Pen, neta do fundador do partido e mais jovem deputada federal da história do país, ganhou o primeiro turno na Provence-Alpes-Côte d’Azur, sul do país. A tônica de sua campanha está contida em frases como: “está fora de questão deixarmos que nossa região passe de riviera à favela”. Ao norte, sua tia, Marine, também ganhou o primeiro turno. Para tentar barrá-las, o Partido Socialista retirou sua candidatura para apoiar a centro-direita de Sarkozy.
A Europa atual, pela primeira vez em um longo período sem guerras totais, anda desconfiada da própria alma. A paz atual não é desfrutada, mas segue cativa da insensatez humana. Estamos muito distantes da década de 1930, mas tão próximos. A violência continua persistente como força definidora das relações humanas. O anti-depressivo ocupou o lugar das instituições. E a democracia, de tanto ser mal-usada pela política, pelo visto, conquistou tudo, isto é, pode ser abolida.
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PAULO DELGADO é sociólogo.