O TRIUNFO DO HOMEM COMUM
Correio Braziliense e Estado de Minas – domingo, 13 de Novembro de 2016.
E a América, com juventude, desobedeceu e votou errado. Wyoming, o mais jeca Estado americano, derrotou a pretenciosa New York City. Todos os que perderam com a globalização estão assustados, e felizes, por dizerem ao mundo: parem com suas verdades que mudaram a alma da minha família e enfiou a pátria num container.
Muitos espectros rondam o mundo atual: o contágio da diferença, as leis da imitação, a controvérsia imposta sutilmente, os fenômenos da semelhança sufocados, o esgarçamento das concepções coletivas, a perda de vigor da homogeneidade, o fim do livre arbítrio, a fome de levar a todos a passar pelos mesmos caminhos. O touro bruto levou a presidência americana, no que foi rapidamente reconhecido por Obama, o maior perdedor, a oligarquia democrata dos Clinton e os três monarcas da família Bush, dois ex-presidentes e o que competiu contra ele na convenção republicana e perdeu.
Como a pesquisa tradicional, que nunca foi uma teoria da intencionalidade do outro, com suas perguntas velhas, tão antigas, como os políticos, vão acertar o que anda pensando o povo da elite de seu tempo? Políticos que usam mal suas qualidades, se deixam dominar por seus defeitos e têm o péssimo hábito de esperar mais dos outros do que exigem de si mesmos. São tantos os emissores de identidade e boatos na vida atual que é possível dizer que não tem nada de ideológico no resultado da eleição americana. Como não teve nas eleições municipais brasileiras, nos arranjos espanhóis de centro, no fracasso do governo socialista francês, na grosseria de Putin, na força de Xi Jinping. A ideologia hoje é uma ficção, não tem existência ideal, politizada. Tomada pelos partidos políticos como forma cínica de manipular a vida do povo, a ideologia é vivida pelas pessoas comuns como coisa material, sem ter nada a ver com a ilusão da política, e a vida de rua das ideias do mundo.
Para o homem comum, a família, seus costumes, suas concepções de lealdade e afeto, sua religiosidade, nunca saíram do círculo dos seus favoritos. Ainda que seus filhos possam estudar, mudar, trabalhar, viajar pelo mundo como navios portugueses da época das grandes navegações. A imensidão dos sonhos atuais, o esplendor do consumo, as mercadorias, o Twitter, Wattsapp, Instagram, impulsionaram o relativismo moral para milhares de pessoas, mas não mudam a rotina da multidão que ainda vive, como um padecimento do amor, o sofrimento da vida.
A política está perdendo amigos por não estar dizendo tudo as pessoas. O mundo fechado das capitais e seus segredos. Deságua sobre as cabeças a transitoriedade do poder, sua evanescência, as mais delicadas ideias do que é democracia, mas, didaticamente, reafirma-se o peso do respeito institucional. Os ânimos tremeram quando o improvável desconcertante foi apurado. A exemplo do que ocorreu quando o Ocupe Wall Street apontou o dedo para a especulação criminosa e o Vem Prá Rua disse que a política não funciona para o povo no Brasil. Ondas que arrebentam, é claro. A eleição de Obama era altamente improvável. A de Trump também. Mas vem num turbilhão distinto. Todavia, ela não é um movimento reacionário, como eleger Obama foi revolucionário. O internacionalismo continua uma utopia. A paz também. Igualdade, bondade, a primazia das virtudes, da mesma forma. Belas e feias, poderosas e frágeis. O mundo tem que evoluir muito até lá. Se a presidência dos EUA foi disputada na baixa é a decepção com os “melhores” que não tem deixado os países negociarem seu futuro na alta. E boa parte do povo, cansado, assustado, abandonado, aposta nisso. Convergência só funciona quando pessoas livres sentem a possibilidade para as coisas também serem divergência.
A agenda negativa interna tomará um bom tempo da Casa Branca. Trump terá muito poder a partir de 20 de janeiro de 2017. Senado e Câmara terão maioria republicana e ele desempatará a Suprema Corte entre liberais e conservadores com sua indicação. O 45º presidente americano ganhou repetindo até o fim que o sistema, corruptamente, ceifaria sua vitória. Não só ganhou, como ganhou com todas as cartas na mão, ainda ouvindo de um exemplar Obama que ele chegou até lá e é digno “da presunção de que nossos compatriotas agirão com boa fé”.
O que será do capitalismo, das cadeias globais, dos valores e das virtudes que sustentam a humanidade? Podem até estar em perigo. Perigo maior, no entanto, é se não despertarem a devida consideração por parte de todos que acham, erroneamente, que o futuro é imutável. E para quem se acha melhor que os outros lembre-se do que São Mateus ouviu de seu líder no alto de uma montanha: aquele que disser tolo ao seu irmão, arderá entre os perdidos.
******
Paulo Delgado é sociólogo.