Nórdicos, Era uma vez
Correio Braziliense e Estado de Minas – domingo, 13 de maio de 2018.
H. C. Andersen, a quem o mundo deve alguns dos contos de fadas mais emocionantes, talvez tenha sido quem cantou com mais conhecimento a existência de uma Escandinávia. O dinamarquês, em meio aos movimentos nacionalistas do século 19, comprou a ideia de que, centrada na região da Escânia, no extremo sul da Suécia, irradiava uma civilização abarcando as regiões que, no passado, formaram a régia União de Kalmar (do século 14 ao 16). Em seu auge, a União de Kalmar era soberana de regiões onde hoje estão todos os cinco países nórdicos. Todavia, o núcleo era composto pelos três reinos existentes à época: Noruega, Suécia e Dinamarca, onde são faladas línguas muito parecidas entre si. A Finlândia, pertencente à Suécia durante muitos anos, fala uma língua distinta do centro escandinavo.
Em pleno desencanto pós-industrial, o que os nórdicos alcançaram não pode ser compreendido pela velha rixa entre esquerda e direita. Tampouco pela compreensão de que socialismo é a negação do capitalismo, ou vice-versa. A simplificação das dinâmicas, anseios e valores da sociedade de forma binária e rígida é nefasta. Rigidez é morte, flexibilidade é vida.
Em tempos cada vez mais estranhos, todo acirramento que force pessoas a escolherem lados, terem certezas, marcarem posição, negarem a coexistência de variedade e dignidade pessoal, a não deixarem margem para a falibilidade, a falsificação e a dúvida são pratos a mais servidos no festim do velho estado autoritário que tanto sucesso ainda faz na política.
É exatamente disso que os nórdicos escapam. Lá se aprende a pensar por conta própria, respeitando o dissenso e a complexidade da vida. Lá tanto J.M Keynes quanto F. Hayek têm razão. Se, por um lado, o Estado intervém constantemente para suavizar crises e induzir crescimento e bem-estar à la keynesiana, por outro, eles só conseguem ter o que têm em associação a quem faz o serviço da cruel competição econômica em liberdade, hoje liderada pela opção que esses países fizeram pelos EUA. Hayek descreveu a possibilidade de tal equilíbrio, em 1960, em seu A Constituição da Liberdade. As bases da democracia social nórdica vêm mais daí do que de K. Marx.
Na inesquecível narrativa de São Lucas sobre a visita de Jesus a Marta e Maria, a primeira, atarantada de trabalhar, se assemelha aos EUA, para que Maria possa ser nordicamente contemplativa, e assentada, conversar com o Salvador. O mistério reside no fato de que se pode escolher a “boa parte” do inesperado que é a riqueza da vida. É a simbiose entre trabalho e espírito que faz as grandes nações.
Da pequenina e fria Islândia à misteriosa Finlândia, a busca da felicidade é o centro da política pública. Em 2018, a Finlândia foi considerada o país mais feliz do mundo. Um detalhe muito interessante é que se trata do “mais pobre” dos países nórdicos. Esse ranking de felicidade da ONU é dominado pelos nórdicos desde sua primeira edição. Em paridade de poder de compra, sua renda per capita chega a ser inferior à da França. Em termos absolutos, a renda média finlandesa é próxima à alemã, mas por ser muito mais caro o país da Lapônia, o finlandês médio consome muito menos do que o alemão médio.
Aperfeiçoando a característica distributivista de políticas públicas compartilhadas com noruegueses e suecos, a Finlândia experimenta um audacioso programa de renda mínima sem contrapartida. São 560 euros mensais desvinculados de qualquer coisa. O estudo, que mira num grupo de 2 mil desempregados, custa ao país 20 milhões de euros e foi desenhado durante o governo atual de centro-direita. Aliás, programa de renda mínima não tem nada a ver com debate entre esquerda e direita, uma vez que é universalmente comprovada sua eficácia a um baixíssimo custo relativo. O que se discute mundo afora são justamente as condicionantes. Se é importante atrelar alguma contrapartida, filhos na escola e procura de emprego, por exemplo, ou não.
A centro-direita finlandesa, que quer cortar burocracia e promover liberdade, está testando se não seria melhor só mesmo garantir a renda mínima sem qualquer vinculação. A renda mínima, como uma cenoura para motivar e possibilitar a busca do emprego, pode não ser cortada caso se passe a trabalhar. Em tal caso, mais que mera ideologia, testa-se a política igual para todos. Quando os resultados ficarem disponíveis no fim de 2019 se decidirá, democraticamente, se esse é o caminho ou não.
Com todas as controvérsias das boas histórias, a região que Andersen tanto amou representa hoje no mundo o que mais próximo existe de um conto de fadas. Real, pragmático, justo e, ao que tudo indica, não apenas ao fim, mas ao longo, marcadamente feliz.