Os que têm a hora marcada
O Estado de S. Paulo – 12 de junho de 2019.
Quantos amigos podemos perder até que não tenhamos mais nenhum? Qual o grau de fervor se põe numa discussão até que tudo vá por água abaixo? Depois que o contrato é imposto, quem é responsável pelo erro; como é possível voltar ao estado anterior? Qual nível de alienação uma nação suporta? A evidência científica e a diversidade brasileira não podem ser devoradas por supremos conselhos. Nem é justo nos defrontarmos com uma lacuna na sensibilidade para diminuir o sofrimento humano. Os ganhos com a desumanidade têm sido tão grandes que parecem compensar a perda de bons interlocutores das políticas públicas. Não é conflito com paradigmas novos. É que o insucesso da bondade está tornando malsucedida qualquer ponderação sobre os riscos da certeza excessiva.
Desde 2013, quando a falta de conhecimento governou a imprecisão, cresceu o bloco que prega o colapso continuado do contexto e imagina ser simples enfrentar problemas complexos. Muitos se esquecem de que não é possível gerar na terra um sistema complexo como a alma humana. A política nacional antidrogas sofreu com essa confusão estatal e se arrisca a não ver a visão subjetiva como parte essencial de toda objetividade. Assim, não devia o Estado continuar a dar circulação a modelos de intervenção terapêuticos em que predomina, misturado à engenharia de poder, o risco de a classificação arbitrária de pacientes somar-se à possibilidade de lucro na abordagem do problema. Mesmo quem pode pagar internações e terapias caras está decepcionado com o que anda fazendo a alta medicina psiquiátrica. A contabilidade do Estado deve ir além da abordagem em círculo que gira droga-doente-leito-tempo-fatura. Se, por causa da crise econômica prolongada, a pressão por novos serviços pagos vira o centro da política sanitária, é certo que não haverá a capacidade de estabelecer uma interconexão segura que separe os desejos individuais da indecência social que impõe droga às cidades, na cara de todos.
Acreditar que o Estado pode e deve tudo é uma guerra perdida e mistura governos social-democratas, liberais ou populares. No caso do enfrentamento do crack, álcool e outras drogas, a imaginação é mais poderosa do que o conhecimento, especialmente porque o mundo é um mundo mesclado, cheio de dissociações e fragmentos, e qualquer técnica de abordagem que contenha resíduo de dominação ou opressão é uma técnica desorientadora e derrotada. Os usuários não estão camuflados, não são alvos a mirar. Decisões polêmicas atraem iguais inclinações adversas, assim, não se deve querer encaixar a doença mental e a dependência química em nenhum baralho do poder. É necessário reimaginar a ideia do estado de ânimo de quem sofre e não querer estocar nenhum poder sobre eles. Uma boa lei é aquela que pode ser compreendida e obedecida e, ao ser imposta, não causa dano desconhecido. Embora deva ser moralmente motivada, o mais importante é que esteja prudentemente redigida. E, hoje, loucura, álcool e drogas se tornaram um nó intransponível na edificação e classificação da qualidade dos ideais da sociedade democrática. Há pessoas que, mesmo fora da ordem penal e do crime, não têm afinidade com a sociedade na forma como ela está organizada e não podem ser moralmente condenadas por isso, ou forçadas a tratamentos morais.
Observando o fracasso das estruturas simbólicas dos jovens no mundo do crack, vê-se uma droga que não leva ninguém a San Francisco nem vislumbra no seu êxtase alguém gentil com flores no cabelo. Antes, produz no país uma vibração estranha, nenhum novo conhecimento, mas explicações contaminadas por doutrinas morais de grupos. Ninguém está autorizado a fazer o bem sem escrúpulos ou querer ajudar o outro sem consultá-lo. Sem contrapartida possível por parte do usuário, a bondade é um ato de poder como qualquer outro e, se imposto, é também violência. Num tempo em que os processos psíquicos suplantaram os processos sociais e políticos, é bom nunca ficar satisfeito com o que sabemos. Esta é uma área em que a maioria das explicações não explica e na qual o ponto de vista do paciente importa tanto quanto o dos técnicos.
Não se aborda de forma direta e frontal a alma de ninguém. A política antidrogas precisa ser reconhecida por toda a sociedade pela sua abordagem múltipla e indireta, sem nenhuma conotação de limpeza de edifícios pessoais. Dra. Nise da Silveira, que dizia que ninguém sabe ao certo onde se ancoram nossos alicerces, alertava para o risco de querer curar alguém além da conta. Qualquer política diferente disso pode agravar o irreconhecível. O usuário de droga é uma rede interligada de sofrimento, desejo, autonomia e prisão. Se a abordagem mirar um único aspecto, mesmo visando “somente” à desintoxicação, travará uma guerra perdida, interna-desinterna, aumentará tumultos e caos. Nenhuma infusão de dinheiro, sem catalisar as diferenças com criatividade, evitará a contaminação psíquica que se agrava com o confronto de opostos hostis em clínicas fechadas. A força errada, aplicada no lugar errado, poderá nos fazer voltar a épocas perdidas. Sem base holística, integral, confiança nos relacionamentos, não vamos conseguir mudar o parâmetro dos que são abordados como se tivessem a hora marcada.
A doença não é um fracasso. Fracasso é a ilusão carceral da terapia. A melhor maneira de não precisar de internar é internar menos, pois a lógica da contagem de corpos, com as incursões remuneradas na população-alvo, trará um Vietnã de equívocos. Não se bombardeia o usuário como se fez com Saigon. Há situações em que a incerteza é mais apropriada do que a certeza e evita o fracasso de guerras perdidas. Guerra que decidiu não concentrar o poder de fogo sobre os trens de suprimento que não param de chegar, dos depósitos dos distribuidores cada vez mais próximos do consumidor. Se o salmão está envenenado, melhor cuidar de também despoluir o rio.