O EFEITO BUMERANGUE DA REELEIÇÃO – Reavaliando a Ignorância

Capital Político – 16 de Agosto de 2020

O pobre é aquele desamparado ser humano que mais transfere seu poder ao político. As maquinações que a política faz com seus sentimentos são dramáticas. Seu maior inimigo no Brasil é a reeleição. Originária da década de 1990 como o Plano Real, se este mirou longe como um telescópio, a reeleição é sombria como um microscópio. Cada vez que alguém se reelege, tudo piora. 

Como agora já se diz que depois de injetar 1.3 trilhões na economia por canais errados, sem sinais de melhora da economia  ( o Banco Central continua ruim de mira ao preferir inundar de crédito mais os bancos do que o tesouro ) e enterrar mais de 100 mil eleitores em 5 meses, conta com a reeleição para fazer pior por mais quatro anos. Outra vez age a providência maligna.

Sustentada pela preguiça de nossos costumes, a reeleição esgotou todas as possibilidades de a política pretender servir ao bem comum por meios melhores. E fantasiosamente transformou pesquisa de opinião, em qualquer época, em fator de reeleição. Porque é tal a super cobertura do fenômeno que qualquer situação inelegível é incluída na análise. Fabrique o exótico, amplie o familiar. O conjuntural virou estrutural e o oportunismo das coalizões virou jogada de mestre escondendo a corrupção de costumes debaixo da cooptação eleitoral do governante no poder.

As consequências metodológicas disso nas ciências sociais e políticas foram terríveis. Acertar o que vai acontecer passou a devorar qualquer análise de fatos e realidade. E a imagem que os institutos de pesquisa passaram a ter de si mesmo passou a ser a de ator político reduzindo tudo a explicação psicológica e fatores de ordem pessoal. Reeleição então é um conjunto aquiescente de respostas de entrevistados não querendo decepcionar entrevistadores para fixar o valor apurado do eleitor. Pura e facciosa especulação.

O fato sucessório, como única experiência comum que interessa à análise política, introduziu um erro padrão no acompanhamento da gestão governamental que é analisar o desempenho do executivo pelo viés eleitoral. Como se bom para o país fosse o sujeito que já quer ter outro filho e ainda não foi capaz de criar bem o que já tem.

Reeleição é regra artificial cuja importância é a autoimportância que a política se dá, um esteio que se sobrepõe a todos os outros. Interessa mais à economia da política do que aos seus resultados.  Seu equivoco preferido foi ter nascido como ênfase na pessoa, um viés pessoal do governante que não é um aspecto essencial da história ou da genética brasileira. O modelo consolidou-se como uma conveniente deficiência imposta ao país por grupo político inábil para conduzir sua sucessão e logo entrelaçou todas as nossas outras deficiências. 

O princípio nasceu como expediente privado e se mantém com sua natureza de erro, um reino objetivo de atraso, comodidade e corrupção de costumes e valores governamentais. O que se obtém de bom com a reeleição? Para o país, nada. Pois com sua ética da continuidade a reeleição não permite que nada aconteça fora dos seus limites e como regra de sacrifício não deixa que o país saia do lugar.   

Instituída por emenda constitucional em junho de 1997 com a desculpa de proteger o Plano Real (em vigor desde julho 1994) dos seus adversários se tornou uma religião cuspindo regras de donos do poder, razão da agonia e morte da prosperidade econômica. Vendo assim a reeleição funcionou como um antídoto contra a economia liberal. Uma conspiração política do governo que criou o real contra a lógica do real.  

Assim, o plano econômico impulsionador do processo histórico de independência para todo o povo foi trocado pela criação e desenvolvimento de uma comunidade política baseada na solidariedade corporativa (fisiologismo, base do governo, centrão) que bloqueou o diálogo livre entre o Estado e a Sociedade.

A reeleição resolveu para o patrimonialismo brasileiro uma contradição histórica do país: o Estado conseguiu finalmente centralizar, pela via política, seu caráter disperso e de grupos. A política feudal dos partidos passou a dirigir o setor da economia tradicional, dependente do Estado. Todos os três presidentes que se beneficiaram da reeleição fizeram campanhas economicamente absurdas para se reelegerem e um segundo governo desastroso para suas biografias, o orçamento da União e o horizonte do país. Estão aí as consequências desse acúmulo de erros.  É ela que quebra o Estado, desencoraja a sociedade para a autonomia e induz o eleitor à hipocrisia. Quando a elite é tão sem juízo não adianta pedir ao povo para ser melhor. 

Contraditoriamente, subproduto de um plano econômico idealista, técnica e materialmente sustentado, aceito e compreendido, a reeleição foi usada como um freio político para remediar arranjos circunstanciais de interesse de grupos, vetar a circulação de líderes e dar segurança de vitória eleitoral antecipada. Até hoje este é o seu motor de arranque, a sua única razão de ser.

O Plano Real, com a autoridade cívica e profissional de sua brilhante equipe de formuladores, era um pensamento e uma ordem econômica para transformar brasileiros em cidadãos.  O princípio da reeleição foi acoplado a ele como um contrapensamento de desordem, uma regra de solidariedade interna de grupos políticos e comodidade governamental responsável por desfazer os sonhos do cidadão e o reduzir a suas necessidades imediatas. 

É infalível, quem mais paga tributo à reeleição é a verdade e a estabilidade econômica e o progresso do país. E a coisa é feita ardilosamente pondo a culpa na pobreza e desigualdade social. Porque desde então a principal desculpa para rejeitar qualquer regra de austeridade ou responsabilidade fiscal do Estado é a necessidade de atender emergencialmente os eleitores pobres. O velho laço entre a ambição e a inércia. Uma dualidade ilógica: a reverência aos pobres anunciada como irreverência ao que poderia retirá-los da pobreza que é a boa e previsível ordem econômica do país. 

Mergulhe fundo na alma dos dois personagens, o candidato e o eleitor e assim então se compreende: qualquer mudança significativa na vida de um não depende de esforços humanos e boas e estáveis regras socioeconômicas, mas de ser dócil, crédulo e obediente ao outro.   

A reeleição congela na cabeça do povo o modo moderno de mudar de vida. A política, e sua inclinação contra a riqueza legal e legítima, tomou a direção oposta da estabilidade econômica, a única maneira de acabar com a pobreza que se tornou o combustível da má democracia eleitoral que praticamos.

Pensar, isolada e emocionalmente, em qualquer política distributivista de benefícios sociais compensatórios sem enfrentar a necessidade de abolir a reeleição é blefar com os fatos. A única saída é passar a ver valor na população e refazer para 5 anos o tempo de um único mandato. E então derrubar a cerca do curral eleitoral que é a reeleição para que as ideias circulem e o país tenha acesso a outra realidade política. Evitar o tema é não querer reduzir as repugnantes influencias da reeleição na manutenção da pobreza confirmando a negligência e a hipocrisia da política diante das ideias igualitárias.

A estabilidade econômica favorece o impulso para a independência, a reeleição consolida o costume de depender.  Ela dissolve os antagonismos de opinião, endossa o despotismo dos braços fortes do Estado, favorece o dirigismo moral contra os que estão em desvantagem na Sociedade. 

A tirania da reeleição é um moinho triturador da mobilidade social e do rejuvenescimento das práticas políticas. Uma pilha de pedras para contenção da mudança erguida pelos políticos para seus próprios fins. Grosseira e ordinariamente fisiológica a reeleição impôs ao país tal apatia moral que não nos permite reavaliar a ignorância que tal princípio propaga.

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Paulo Delgado
Paulo Delgado
Sociólogo, Pós-Graduado em Ciência Política, Professor Universitário, Deputado Constituinte em 1988, exerceu mandatos federais até 2011. Consultor de Empresas e Instituições, escreve para os jornais O Estado de S. Paulo, Estado de Minas e Correio Braziliense.

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