Clamor pelo Sudão
Deus modera o vento para as ovelhas tosquiadas é um singelo ditado folclórico francês que não se aplica ao ensanguentado Sudão. Terceiro maior país da África e do mundo árabe, não tem paz há quase 50 anos. População de um país de grandes planícies desérticas, zonas montanhosas e planaltos, banhado pelo Mar Vermelho, os sudaneses são descendentes dos Núbios, povos bíblicos da época dos Faraós.
A forte tradição oral, cantos e contos populares de caráter mitológico, mistura mfantasias, magia e superstições e atravessa os tempos. Recitados com alegria e sempre com final feliz fazem parte da melhor tradição. Poesias celebram a beleza do lendário Rio Nilo, a esperança na terra, os mistérios do deserto de Saara e se misturam a canções de louvor ou zombaria, descrevendo crenças e rixas, exprimindo a identidade, a posição política e a visão da vida e do futuro de seu povo.
País com múltipla influência cultural africana, árabe, egípcia e inglesa era possível encontrar todo mês, na Praça Etinay, no centro de Cartum, a capital fundada pelo Egito há 202 anos, centenas de amantes de livros. Reunidos em frente a livraria Sudan, aberta em 1902 pela Grã-Bretanha, a aglomeração compunha o público de uma feira-sebo ao ar livre. Seus organizadores, orgulhosos de uma cidade que já teve mais de 400 livrarias, se orgulham de dizer que não vendem livro usado, mas livro com desconto.
Quis o destino que um conjunto de maus governantes, militares ferozes, milícias delinquentes, religiosos fanáticos e comerciantes sem escrúpulos, se unissem para destruir o país. Conseguiram fazer do Sudão um país marcado pela pobreza, agravada por guerras constantes, crise econômica permanente, fome e fanatismo religioso. No meio de todo o horror primitivo, enfrenta também, como todo o mundo, o esfacelamento cultural provocado pela internet. Tudo assim, e a indiferença do mundo, contribuíram para levar ao declínio a reputação literária dos sudaneses, um dos mais importantes mercados culturais para escritores árabes.
Considerado por diferentes indicadores internacionais como um dos mais pobres, violentos, de alta percepção de corrupção governamental e mais instáveis países do mundo, o Sudão volta a enfrentar conflitos armados entre as forças do exército que controlam governo e grupos paramilitares. Segundo a ONU o número de mortos já ultrapassou o total de 300 com mais de 3 mil feridos ou desaparecidos. Os combatentes não aceitam o cessar-fogo que possa permitir a saída de civis das zonas de conflito, agravando a tragédia humanitária no país.
O militarismo ativo, autoritário e discricionário, legal ou de milícias, é uma triste tradição no Sudão desde a independência. As divisões entre generais, ora dentro, ora fora do governo, impedem que se criem as condições para o país fazer a transição e funcionar como República sob controle civil. Os combates entre as facções rivais, sem nenhuma consideração pela tranquilidade da população civil, são rotina, misturadas com limpeza étnica, genocídios e violação da privacidade e integridade das pessoas comuns, especialmente mulheres e crianças.
Doze milhões de sudaneses estão passando fome, sem moradia, sem água potável, medicamentos, assistência qualquer. A economia está em frangalhos pela negligência do governo com a gestão mais elementar na administração de um Estado. Governos e regimes se alternam através de golpe de estado. Aliás, não há nada mais relevante para a política do país do que o golpe de estado e o caráter inamistoso para opinião divergente.
A sociedade civil sudanesa é bastante ativa, deseja a democracia e muito atenta aos movimentos políticos se manifesta sempre que é provocada. Age da forma imediata e é fortemente reprimida, inclusive com massacres e mortes. A memória da repressão não abandona a vida do povo desde o genocídio de Darfur em 2003 e o massacre no acampamento de Cartum em 2019.
Contribui muito para instabilidade política a existência de quase 80 partidos políticos em atividade frenética. Líderes militares e civis tensionam a população com suas rixas por poder colocando o país em regime de exceção permanente. Daí não conseguirem consenso para fazer a transição para um governo democrático. O Conselho Soberano de militares e civis, instalado no país desde o golpe militar de 2019, que derrubou a ditadura anterior, deveria fazer a transição. Como é internamente dividido e conspira contra a democracia a transição acabou em 2021. Os conflitos atuais são a sequência de golpes dentro de golpes. Liga Árabe, União Africana, ONU, União Europeia, China, EUA… quem está disposto, de coração, a ajudar o Sudão?