A angústia da esperança
O Estado de S. Paulo – 13 de Novembro de 2019.
Não tente ver spams, memes, emojis e outras formas do assédio online com simpatia. A insegurança cibernética é um assombro e a internet, uma fábrica mortal de trolls, exércitos mercenários e hospedeiros de notícias e sentimentos falsos perturbando a sociedade. Sem freios, avança feroz para desestabilizar pessoas e instituições democráticas.
Não é a desaceleração da economia mundial que está tirando o sono do mundo. É o aumento da matrícula na escola do ressentimento para depravar política e tecnologia. O tráfego de pessoas, produtos e Estados autoritários na internet contra a vida alheia é uma obra-prima da extravagância que cria e agrava conflitos em todos os países. Robôs e redes sociais põem multidões a postos, negociam notícias produzidas por hackers e insuflam o exagero dramático dos jovens diante das dificuldades da vida.
Assim como a destruição da razão em política combina com uma bomba-relógio, a era da inteligência artificial consolida os novos currais eleitorais de ativistas sob controle das comunicações manipuladas. A revolta ganha força impulsionada pela desinformação, a propaganda dirigida e a perda de controle do cidadão sobre seus dados pessoais. Não é bem reivindicação, o que move a massa é a reclamação. A era tecnológica é cada vez mais volátil e nada disso cheira a democracia.
Na região, um dado a mais. É a discórdia, não a polarização, a marca incorrigível da democracia. Agravada por sistemas políticos acuadores, que não aceitam derrotar os empacados, o líder que não quer mudança. Em toda eleição aparece um ancestral, ou que não quer sair, ou que quer voltar. Somos um continente inibidor e assombrado.
Todos os embaraços se agravam, misturados à mania de confundir problemas reais com personagens políticos. No Brasil a desavença é um descentramento, o nada no centro, um abalo segregador que visa a impedir que surja algo novo. Não é o avesso da coisa, é a má forma do original. Sociedade que só se move por sentimentos partidários é o ambiente ideal para a crítica virar sinônimo de amargura ou frivolidade.
E é nessa confusão que começa hoje em Brasília a XI Cúpula do Brics, quando Bolsonaro, Putin, Modi, Jinping e Ramaphosa terão a oportunidade de confirmar que são boas ideias que mudam o mundo, não más notícias. O grupo representa 44% da população mundial, cerca de um quarto da terra e outro quarto de seu PIB. Não há nada no Brics destoante da ordem mundial fundada com a vitória aliada contra o fascismo. É uma cúpula de vencedores essencial ao debate das ações globais.
Que deve observar que desde 2011 o transatlântico da estratégia de segurança americana cansou-se do Oriente Médio. Tomou susto e birra com os avanços do mundo eletrônico que não estava focado em guerras e ajustou seu curso para a Ásia. Desde então essa reorientação vem sendo construída em meio ao rescaldo da maior crise financeira desde a 2.ª Guerra. Os Brics não podem embarcar nesse navio de guerra ou deixar hacker emporcalhar a tecnologia que mira o futuro. Tampouco devem deixar de buscar pontes com todos os que refutam a ideia de que a única utilidade dos seres humanos hoje é gerar dados para monopólios de comunicação e passeata.
Os Brics estão sob um ataque de anulação, ou dos que não têm fonte fora de Washington, ou dos que não querem salvar os EUA de si mesmo. Pois um mundo próspero, tranquilo e seguro não combina com nenhuma potência hegemônica.
A ideia de Rússia, China e Índia de separar sua internet do mundo americano para preservar sua autonomia é uma opção pior. Embora revele mínima noção do que vem por aí. Ao Brasil cabe convencê-los a trabalhar com União Europeia e EUA para a construção de normas de segurança cibernética e sua regulação mundial. Juntos poderão combinar perdas passadas com apetite futuro. Estados, plutocracias e movimentos autoritários não deviam poder nos atacar dentro dos nossos computadores e celulares. É hora de fazer o balanço das 323 manifestações, pacíficas ou violentas, que agitam os países para reeducar a tecnologia e não usar revolta como propaganda de poder.
Cabe ainda ao Brasil aumentar sua capacidade de defesa cibernética para ser levado a sério, pois passa a impressão de estar perdido. Somos o único país grande que não está ligado, com seriedade de Estado, na questão da tecnologia do futuro.
Para entender a escalada da encrenca geopolítica atual é preciso voltar à Estratégia de Segurança Nacional americana. Em 2015 a linguagem dos EUA dizia que “o potencial da Índia, o crescimento da China e a agressão da Rússia, todos impactarão significativamente o futuro das relações entre grandes potências”. Com relação à China vem à tona a ansiosa formulação de que se buscará “gerir a competição a partir de uma posição de força”.
O documento publicado em 2017 mira os Brics de modo cru. E aperta o gatilho 33 vezes em direção à China e 25 em direção à Rússia, informando que os dois países querem “erodir a prosperidade e a segurança dos EUA.” Tantas citações servem para incluir a palavra “revisionistas, um conceito parecido com heresia, desvio, palavra perigosa e injusta nesse debate. À Índia é bem vista como aliada. O Brasil nem sequer é citado.
Com esse clima de confronto, risco e incerteza estão aumentando em todos os países. Cresce, desamparada, a angústia da esperança. E a dúvida sobre política econômica no mundo chegou em agosto ao mais alto índice da série iniciada em 1985.
Os governos não estão conseguindo escrever o texto dessa vida que possa diminuir o abandono no coração dos jovens. A tecnologia vira droga na mão de manipuladores. Cabe à política garantir a liberdade para proteger a riqueza humana. A reunião de Brasília pode contribuir para o entendimento de que manipular dados e fatos pela internet serve a poucos e desvia o foco da economia construtiva, que serve a todos.