A ARMADILHA NO GOLFO
Correio Braziliense e Estado de Minas – domingo, 11 de junho de 2017.
Pérsico ou Árabe, o golfo mais conturbado do planeta surpreendeu na semana que passou. Pegou fogo de forma inusitada. A divisão segue sendo a mesma. De um lado o Irã. Do outro a Arábia Saudita, mais Kuwait, Bahrein, Emirados Árabes Unidos, com um Catar de castigo.
Entre eles, mesmo que por uma fresta, o conflagrado Iraque, detentor de mísera saída para o local, mas exatamente no ponto, chamado Fao, em que separa por terra o persa, e xiita, Irã, dos demais árabes e sunitas. Aliás, vale lembrar que à sua curiosa característica de país muro e transição se adiciona o fato do Iraque ser árabe e xiita. Um pé lá outro cá, mais maltratado hoje do que sua história deixaria antever. Por fim, há o quase sempre esquecido Omã, fechando a parte sudeste da península arábica, peculiar e recluso, casa da minoritária linha muçulmana dos Ibadi, um perfeito e discreto equilibrista. Afinal, tem assento no Conselho de Cooperação do Golfo, mas mantém canal aberto com Teerã.
Sim, a divisão segue sendo a mesma de anos a fio. A novidade desconcertante foi chutarem para o lado de lá do golfo o Catar, porque este ousou pensar diferente dos vizinhos de terra e cultura e ter conversado “demais” com os iranianos, que não são nem árabes, nem sunitas – ainda que tão semelhantes – nos últimos anos.
Trump visitou a tumultuada região e reprovou o fato do Catar, um aliado cativo, falar com o Irã. Não adiantou para o pequeno país da família Thani dizer que contava com a concordância e estímulo do ex-presidente Obama. Trump, sem querer bater de frente com o Irã, abriu as portas para o que mais gosta: massacrar quem não pode reagir e esperar que outro faça por ele. Ele, como bom populista tem solução para tudo, e despreza a complexidade.
Ocorre que a vida é um pouco mais difícil para todos os países da região. E a ocorrência dos violentos atentados no Irã esta semana, poucos dias depois do anúncio da ruptura do Conselho de Cooperação do Golfo com o Catar, pode ser um triste sinal dos imediatos efeitos deletérios da falta de temperança de uma instituição criada para manter o diálogo e o equilíbrio diplomático. Acima de tudo demonstra, mais uma vez, como é temerário os EUA abdicarem de uma postura moderadora e partir para reforçar polarizações em que há claramente um lado mais fraco.
Tal é precisamente o cenário da disputa regional entre Irã e Arábia Saudita. Não há lado certo a se escolher ali. Apenas num esforço de criar balanceamento de poder, a partir do interesse da distante Washington, para imaginar que nenhum dos dois seja capaz de pôr em prática o ódio que expressam sobre o outro.
Obama pensava diferente e apoiou um canal de negociação com Teerã após os muitos anos em que os EUA fortaleceram sobremaneira os senhores de Riad. A continuação dessa estratégia elevaria o equilíbrio na região. Trump desprezou tal estratégia. As razões que o moveram em tal direção são ricas em suposições, mas nitidamente trazem consigo o exponencial crescimento de um flagelo potencial.
A Guerra Fria que vem sendo travada entre Arábia Saudita e Irã perde, com o achincalhamento do Catar, um de seus instrumentos de contenção. Os terroristas que atemorizam a Europa de tempos em tempos arruínam a vida dos cidadãos pacíficos do Oriente Médio diariamente. Um acirramento entre os dois países mais belicosos da região, decorrente da percepção de que não há mais interesse dos EUA em mediar e balancear suas diferenças, é algo muito ruim para todos.
Mas, afinal, existe alguma sustentação para a ação de Trump nos círculos militares e civis incumbidos de pensar a estratégia americana no mundo atual? Pior que existe. Alguns setores argumentam que não há espaço para dissenso no Oriente Médio. E que o modelo estabelecido pelos sauditas é o com maior chance de sucesso. Aqueles que defendem essa visão – que inclui, Israel – empurram e torcem para que Irã e Arábia Saudita cheguem às vias de fato.
Por mais incrível que seja para quem sofre à distância, o Deus monoteísta, em seus mistérios, certamente circulava por ali. Em sua versão cristã de meados do século XX, encarnada no nascente poder hegemônico dos EUA, atuou de forma discreta e oficiosa quando o país resolveu se imiscuir pela primeira vez na vida iraniana, atuando para derrubar o então primeiro-ministro Mossadegh.
Os americanos criavam ali um estilo no qual punham fé. Atuar para endireitar o mundo a sua imagem, acreditavam. No mais feroz diapasão da armadilha que estimulam atualmente virão as consequências. Mudança de postura de quem tem poder não pode ser subestimada. E o que estamos vendo é muito mais o retrato da realidade medíocre da política em todo o mundo, do que a idiossincrasia isolada de um bruto governante do maior país de nosso tempo.
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PAULO DELGADO é Sociólogo.