A democracia agoniza no mundo digital
Gabriel Boric, presidente do Chile, junto com Gustavo Pedro, da Colômbia, já no domingo à noite decidiram convocar reunião de emergência do Conselho Permanente da OEA (Organização dos Estados Americanos), na sua sede em Washington, para que os 35 países membros aprovassem resolução de fidelidade aos compromissos democráticos. E condenar os atos de sedição, organizados na frente do Quartel das Forças Armadas em Brasília, e que naquela tarde, culminaram com a invasão e depredação, de ousadia inédita, das sedes dos três poderes do maior país da América do Sul.
A eles logo se juntaram os presidentes dos EUA, Panamá, México, Canadá, Uruguai, Argentina, Honduras e Antígua e Barbuda para a convocação oficial. O uruguaio Luís Almagro, Secretário Geral da entidade, abriu a reunião no formato soft, protocolar, sugerido pelo Itamaraty, ou seja, uma reunião de embaixadores, não dos chanceleres, apenas de relato, solidariedade continental e condenação de movimentos golpistas. Não houve resolução que apontasse falhas ou vulnerabilidades na democracia praticada no Brasil, nem decisão de monitoramento internacional da questão.
Mas os desdobramentos virão. Os EUA, que enfrentam guerras pelo mundo e uma crise migratória centro-sul americana que já soma mais de 1,7 milhão de detidos em sua fronteira com o México, anda em alerta máximo. A multiplicidade de heresias que tomou conta da política mundial é cada vez mais incontrolável. As promessas de respeito trazidas pela democracia e as gradações de desrespeito fixadas pelas leis não andam respeitadas diante da crise econômica, poder arbitrário, expansionismo militar. E a manipulação de desejos do mundo digital faz todo mundo se achar um personagem, portador de mídia própria, fazendo valores coletivos entrarem num redemoinho. O presidente Joe Biden teme que a confusão no Brasil seja a antevéspera da volta de Donald Trump ao cenário norte-americano, já que o ex-presidente é o guru da insurreição lá e cá e da incerteza porque passa a democracia.
Todas as autoridades, nacionais e internacionais, falam pelo Twitter, um microblog privado, da Califórnia, para comunicação pessoal, através de 140 ou menos caracteres. Conhecido como portal, ferramenta ou plataforma, associada a internet, transforma a pessoa em usuário e seguidor, disponível em tempo real. O símbolo do Twitter é um passarinho, piu-piu em tradução onomatopaica. Uma infantilidade, o rosto mais eficiente da maldade. Enviar tweets é como piar, gorjear, ou, para muitos, arrulhar, gargantear.
Figuras vagas ou notórias se juntaram – também no WhatsApp e Telegram – em torno de situações complicadas, guiadas por mensagens unilaterais que informam, perguntam e respondem a si mesmas. Um ser de fendas abertas penetrando nas brechas dos insatisfeitos. Pessimista ou otimista desinformados, crítico ou crédulo exagerados, temperamentais, doutor sabe-tudo, há um tipo 24 horas no ar que incomoda o outro com o seu problema, buscando sócio para a insônia. O caos, não afeição e privacidade, está hoje em primeiro lugar na cabeça da pessoa digital.
Até aí seria um problema de escolha de cada um. Mas não, é a expressão mundial da política individualista, sem austeridade e rigor oficial, porque cada um é o seu governo. Ser digital não é necessariamente um pendor sério, pode ser preguiça, uma forma de cabresto.
O que houve no Brasil não é fato agudo e passageiro. É projeto para uma democracia tolerada. O lusco-fusco do militarismo enfia a camisa de força no poder civil que se faz servil. Ambos jogando com a indignidade da intimidação, o poder inclinado a ver o resto do mundo à luz de suas convicções. A tarde de domingo comeu de forma ostentatória símbolos da democracia e virou às costas para a lei. É difícil atribuir profundidade aos presos que escondem segredos de alma autoritária. Submetidos à política das coisas, amam o poder que domina e oprime, livre para fazer o que quiser sob tutela. O Brasil está sendo obrigado a aceitar o inaceitável, o avesso do seu destino.
Ou as academias militares e de polícia se ajustam às noções de hierarquia, segurança e defesa na democracia, ou buscar conter o abuso de autoridade será como fogo que não pode ser extinto, por mais que se atire água. As brasas que não se apagam – e que o presidente Geisel soube, na mesma hora, identificar e punir a matriz do problema – parecem querer voltar a exercer sobre o país sua soberania sem partilha.
O meio é a mensagem. Não é eficiente a política que se rende a linguagem de aplicativo. Sua lógica mecânica arrefece a inteligência e apela mais à paixão que à razão. Usado para convocar o erro, não devia ser usado para condená-lo.