A derrama digital – Colonialismo Big Tech
Duzentos e trinta e três anos depois da decretação do dia da derrama, cobrança referente a um quinto do total da produção de ouro da colônia, o Brasil vê dessa vez a Receita Federal autorizar às grandes empresas de tecnologia do exterior, big techs dos bilionários de plataforma, a pagaram menos impostos do que os brasileiros pagam.
Sem entrar no problema maior que era o trabalho não-remunerado (a escravidão), para quem tinha negócio nas minas brasileiras ter que mandar um quinto do ouro para Portugal também era revoltante. Entre outras revoltas, a Inconfidência Mineira, celebrada neste abril, foi contra a impropriedade da derrama. Pois bem, às vésperas do bicentenário da independência, a ser comemorado em 2022, não temos mais o quinto, mas segundo dados da Receita Federal, temos o quarto.
O que é o quarto? É o fato de que as líderes globais de internet (as Big Techs) em operação no Brasil pagam em imposto apenas um quarto do que pagam as demais empresas com receita bruta equivalente em operação no país. É a derrama digital. Pobre Brasil, trabalhando a favor de empresas estrangeiras que estão entre as 10 mais ricas no mundo todo.
O percentual da arrecadação sobre lucro real é inferior a 5% para as Big Techs, segundo informa a Receita. Algo surreal, sabendo-se que qualquer trabalhador que ganha acima de R$ 2 mil paga 7,5% de imposto.
Qualquer estabelecimento comercial paga em imposto pelo menos 6% da receita no Simples. Se não está no Simples, paga pelo menos 15% de IRPJ, muitas vezes até 10% acima disso, mais a CSLL. Ou seja, bares, restaurantes, lojas em geral que estão sofrendo com a pandemia pagam muito mais imposto do que as Big Techs, que estão lucrando com a digitalização acelerada pela pandemia. Não é justo.
Até o FMI – por meio do português Vitor Gaspar, seu diretor de Assuntos Fiscais – está propondo que companhias que prosperaram na pandemia paguem um imposto adicional em solidariedade. Todavia, isso é a ponta do iceberg de uma discussão mais profunda que aparentemente chegou a hora de ser resolvida internacionalmente.
A OCDE e o G20 já estão em cima disso há um tempo porque a União Europeia – e os empresários europeus – se preocupam com o assunto. Não só se preocupam como não aceitam o que consideram ser uma colonização digital.
Decorrente da assimetria imposta pelas Big Techs que ganham pela bem-vinda digitalização da economia, mas que também querem ganhar como antigos monarcas ociosos de ultramar.
A grande maioria das pessoas concorda que Big Techs como Google, Microsoft, Amazon e até o enrolado Facebook promovem valiosos ganhos para as pessoas e as empresas. Por isso, inclusive, a União Europeia investe na sua própria: a Gaia-X.
Mais para baixo nesse iceberg tem também a questão de se estabelecer um piso de imposto a ser pago por multinacionais, proposta que o atual governo dos EUA resolveu apoiar. Algo que vem para atenuar os efeitos mais negativos da guerra fiscal entre os países.
Tem a ver com a ideia de que multilateralismo e regras globais são importantes para segurar um pouco a tendência que, de 1980 para cá, desequilibrou demais a balança capital-trabalho para o lado do capital selvagem.
Especialmente porque o desequilíbrio não foi em favor de qualquer capital, mas em favor de um capital que ganha dinheiro diminuindo o custo do trabalho em jogadas transnacionais.
O que aumenta a desigualdade e a sensação de insegurança de vários grupos sociais e não faz crescer a economia.
Em tempos de se fazer a necessária reforma tributária, o Brasil tem que ter clareza que o mundo já está passando da fase de se tornar competitivo por baixar imposto. Tem é que simplificar e ser mais justo.
A receita pública no Brasil ser de 30% do PIB está correta – ainda está longe da França, que está em 43%, e da média da União Europeia, que está em 36%. O problema a ser resolvido é saber a racionalidade, a estratégia e a justiça.
Sejamos razoáveis: não dá para a Microsoft, que tem uma capitalização hoje superior ao PIB do Brasil (você não leu errado) ter uma alíquota de imposto menor do que a do Seu Joaquim, dono de padaria, assim como menor do que a das grandes empresas empregadoras brasileiras de sua área.
Os EUA que se separaram da Inglaterra animados pelo slogan “nenhuma tributação sem representação”, vão entender que a situação atual é espelho da outra. É questão de que para grandes multinacionais têm que valer a regra ao redor do mundo de que não haverá “nenhuma representação sem tributação”.
E a tributação precisa ter isonomia com os nacionais que contribuem com a receita pública.