A Europa Muda de Pele
Correio Braziliense e Estado de Minas – domingo, 19 de Março de 2017.
“Qualquer Estado-Membro pode decidir, em conformidade com as respectivas normas constitucionais, retirar-se da União”. É o que diz o artigo 50 do Tratado de Lisboa. O início do procedimento é o fato do Estado-Membro notificar a sua intenção ao Conselho Europeu. Um acordo que estabelece as condições da sua saída é então negociado por todos os membros e celebrado em nome da União pelo Conselho, após aprovação do Parlamento Europeu. A União Europeia é uma construção amorosa de um continente cansado de guerra. Não há nela a indissolubilidade dos pactos marciais. Ao querer-se muito moderna, não previu as voltas que o mundo dá.
Aprovado em referendo pelos eleitores britânicos ano passado, apreciado na Suprema Corte do país, que mandou o Parlamento confirmar ou não a vontade expressa no referendo e – uma vez autorizado por Westminster – sancionado dias atrás pela rainha, cabe agora à primeira-ministra, Thereza May, notificar sua intenção de deixar a União Europeia ao Conselho Europeu. Ela afirma que o fará ainda neste mês de março. A partir dali terá uma negociação sob a qual pairam muitas dúvidas. O estabelecimento de como sairá da União pode ser lavrado de forma pragmática, como quer o Reino Unido, ou de forma estratégica, como pressionam setores menos céticos e que desejam exemplificar como ganha-se mais estando dentro da UE do que fora dela. Em tal imbróglio, a Escócia, ironia das ironias, será uma pedra no sapato inglês. Logo ela, que forma com a Inglaterra a mais antiga bem-sucedida união entre nações em operação no mundo, ameaça se separar e optar pela mais diversificada União Europeia.
Enquanto isso, do outro lado do Canal da Mancha, Mark Rutte liderou o Partido Popular Para a Liberdade e a Democracia a uma apertada e celebrada vitória na Holanda, quinta-feira passada. Seu tamanho encolheu e o do populista Geert Wilders cresceu, todavia. Por isso mesmo, o alívio imediato não deve ser muita coisa. O crescimento do populismo irascível está em marcha crescente por aí. Pela via eleitoral os inimigos da democracia descobriram a forma ideal e mais rápida de acabar com ela. Levando junto o abandono do euro, o fim da UE, o retorno do controle militar das fronteiras, o ódio do pai ao filho dos outros.
Nesse aspecto, nada mais interessante do que observar a campanha turca para estabelecer o presidencialismo no país através de referendo. A forma como tem sido vetada na Europa, onde moram milhões de turcos, adiciona mais sombra à consulta. Achincalhada e falsificada, vai sumindo do horizonte europeu o rosto da “estirpe” do iluminismo, do racionalismo, dos direitos dos homens e do cidadão, do fim da fronteira entre as nações.
A despeito de todo esse reacionarismo – ou por conta dele mesmo – diz a Gallup que pelo menos 640 milhões de pessoas desejam sair de seus países. E as ponderações mais sensatas demonstram que o mundo de hoje tem menos mobilidade humana do que deveria ter dados os avanços tecnológicos de transporte e comunicação. Pior, o mundo de hoje é menos próspero do que poderia ser, por conta de suas fronteiras burocraticamente fechadas. Mas é preciso ter fé e paciência num mundo de pessoas de voo longo e pessoas de voo curto.
Uma analogia zoológica cabe bem aqui: a mudança da pele de alguns animais como forma de evolução. Ou a muda da plumagem dos pássaros que migram para outros campos fugindo do inverno. Os pássaros que não pousam em arbustos, só amam o alto das árvores e dali se lançam para cantar em direção ao céu. Os que fogem das cidades e áreas habitadas. Os que vivem bem em quintais com crianças e animais. Os pássaros retardatários que somente migram quando sua ninhada está pronta e mesmo que a plumagem seja a velha se arriscam a voar em direção à primavera ou ao calor. Os que alimentam filhotes abandonados. Nem todos os seres conseguem partir ao mesmo tempo dos outonos e invernos da vida.
A Europa adora ser grosseira até ser confrontada com uma grosseria maior. Ela não diz nada de si mesma. Quando era possível caçar pássaros, alguns eram desprezados por não se adaptarem em cativeiro. Muitos até cantavam em gaiolas, mas como não trocavam a pena era possível considerar uma doença. É a lei da natureza. Nenhum pássaro perde tantas penas de uma vez que fique impedido de voar.
Mas não é o que acontece com a política na Europa. Você pode migrar no continente, mas não tem mais como pousar. Esqueçam o automatismo ideológico: sem essa de que a direita quer demolir e a esquerda construir, ou vice-versa. O século XXI se construirá ou destruirá em torno de outras (in)definições. É uma imperfeição mortal da política. A direita não confia na diferença; a esquerda desconfia da igualdade. Com que pele alguém é merecedor de alguma gratidão da humanidade?
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PAULO DELGADO é sociólogo.