A Ficção do Passado
Correio Braziliense e Estado de Minas – domingo, 17 de fevereiro de 2012.
Em 2012, cientistas da Universidade de Nottingham, na Inglaterra, criaram um útero artificial de mamífero que é capaz de desenvolver um embrião fora da barriga da fêmea; nesse caso, um camundongo. Mas há uma década atrás, na Universidade de Cornell, em Nova York, experiências semelhantes foram feitas com células e embriões humanos, que não puderam, contanto, durar mais do que os primeiros dias a fim de que fosse respeitada a legislação sobre fertilização in-vitro. Segundo estudo publicado pela Academia de Ciências de Nova York, essa linha de pesquisa remonta à década de 80, sendo que em 1986 foram publicados os primeiros resultados.
Desde então, as pesquisas para se criar um útero artificial para humanos continuam ocorrendo mundo afora. A ideia de alguns é que um dia se possa aplicar nas pessoas um tipo de experiência que em 2011 possibilitou que tubarões se desenvolvessem por completo num ambiente artificial, facilitando a procriação de certas espécies ameaçadas de extinção. Também no caso do estudo com camundongos o intuito é extrair conhecimentos que levem a melhores tratamentos para a gestação humana.
Mas a possibilidade de utilizar úteros artificiais para formação de pessoas, da fecundação ao nascimento, levanta questões que não são do domínio apenas de cientistas e das entidades que os financiam. Em pouco tempo a sexualidade, que cada vez mais perde prestígio como um ato de amor, se separará definitivamente da procriação e a distinção biológica entre homens e mulheres será uma ficção do passado. Acompanhando com especial curiosidade a formação de sua cobaia, os cientistas estão particularmente interessados em ver aplicações que ajudem a controlar “essa habilidade humana fantástica de se autoformar”.
O avanço científico, como tudo que precisa ter viabilidade econômica, anda de mãos dadas com novas demandas sociais e contextos que propiciem a criação de mercado para as invenções. Quem poderia se valer do útero artificial? Mulheres que não podem engravidar ou correm risco? Ou também aquelas que prefeririam evitar os possíveis desconfortos da gestação? Nesse mundo de cada vez menos tempo, caso os filhos fossem gestados fora das mulheres, não se criaria, eventualmente, um ganho econômico? E se então um dia, quem sabe, as que optassem pela forma natural fossem até mesmo mal vistas por conservarem um costume primitivo?
Costumes, mesmo os mais naturais, mudam se houver alternativas a eles que aparentem ser mais apropriadas. Quem não se lembra, há pouco tempo atrás, quando a simpática indústria de leite em pó, aproveitando-se de modismos, levou muitas mães a pararem de amamentar? O que hoje é, sem dúvidas, considerado um absurdo por qualquer um que entenda o papel do seio materno na vida do bebê.
A consequência dessa curiosidade sem limites pode ir bem além e mexer com a própria formação de nossa civilização. Tais questões suscitam um amplo e acalorado debate que ultrapassa as possibilidades científicas. Sepultar a alteridade sexual no que diz respeito à reprodução, para atender ao desejo de ter filhos de quem assim o desejar, sem precisar recorrer a uma mulher, é o novo mito da modernidade dos costumes. Após a descoberta das técnicas de inseminação artificial e fertilização in-vitro, que tornaram o homem um detalhe na fecundação, a ciência se prepara para oferecer ao mundo, dentro do espírito da imparcialidade high-tech, a redundância também da mulher. Assim vão se dando os principais passos para a medicalização da formação da vida. E para quem não dá valor à família – parabéns! –, vem aí um mundo sem parentes: da era do filho da mãe aos tempos do fim da mãe.
As maternidades industriais do futuro, que cuidarão da reprodução assistida, poderão receber encomendas de gêmeos, médicos, bombeiros, políticos, atrizes, intelectuais, operários, cientistas ou atletas. Já em 1932, o escritor inglês Aldous Huxley imaginou e descreveu um “Admirável Mundo Novo”, onde pais e mães são desnecessários na sociedade perfeita. E a ciência corre atrás para tornar realidade a imaginação antes restrita à ficção. Isto porque, a partir da fecundação artificial, é possível planejar crianças, rejeitar os desadaptados, entorpecer a felicidade com a submissão à ciência e ao poder dos seus controladores. Todos os avanços científicos foram um dia ficção. Mas, devagar com o tubo de ensaio: se existem ficções boas, que tornam a vida do ser humano mais plena, existem também as más, que a fazem desumana.
O homem momentâneo, criado pela pressa e o consumo, está imunizado contra a ideia do futuro. Mas a sociedade é resultado de escolhas agrupadas em torno de valores, autênticos ou deteriorados. E só renuncia às suas ilusões de progresso quando não sabe mais distinguir uns dos outros.
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PAULO DELGADO é sociólogo.