A Índia e o zero
Correio Braziliense e Estado de Minas – domingo, 20 de Abril de 2014.
A Índia é um sentimento apaixonado e destrutivo; a maior democracia do mundo em sua dimensão comovedora e revoltante. Quando vai às urnas, protegida por instituições inglesas assimiladas como parte do sentimento nacionalista, vê-se a celebração merecida de uma cidadania que iguala pobres e milionários, mas acende-se também um fogo indagador : a democracia pura pode ser, ao mesmo tempo, despótica e igualitária ? Em países como a Índia, onde minorias políticas são minorias em aspectos decisivos, a resposta é perigosamente sim.
O coração do subcontinente indiano foi dividido, governado e organizado de várias formas ao longo da história. Hoje em dia são três dezenas de línguas distintas faladas, cada uma, por pelo menos um milhão de pessoas dentro de suas fronteiras que acomodam mais de um bilhão de almas. Para harmonizar tal cacofonia, usa-se a língua herdada do colonizador, que juntamente lhe legou a própria ideia de constituição, do exército e do estado-nação.
O movimento nacionalista que buscou conferir legitimidade e soberania ao Estado indiano é coisa do século XX. Entretanto, quando veio à tona, o nacionalismo pôde se servir fartamente da longa história do hinduísmo na região. Valendo-se de toda uma geração de intelectuais educados na Europa, como Vinayak Damodar Savarkar, a Índia bebeu da cultura ocidental para se convencer da necessidade de definir a sua própria. E fez isso, consciente ou inconscientemente, com parâmetros oriundos desse “outro” de quem queria se diferenciar e se emancipar.
Mas Índia e hinduísmo não são a mesma coisa.
Ainda que o nacionalismo hindu esteja em franco vigor ascendente, a Índia sempre foi ampla e múltipla como suas multidões. Rabindranath Tagore, grande intelectual e artista e autor mesmo do hino nacional do país, criticava com veemência não apenas o nacionalismo, mas a própria adoção do modelo de estado-nação pela Índia. Tagore defendia que tal modelo era inapropriado para seu país, pois concentraria poder demais num ente que não mais se subordinaria a normas comunais de convivência que fomentavam a harmonia. Haveria, nessa visão, um prêmio em forma de opressão dado pela apropriação do poder central. Na eleição atual, a ascensão das forças nacionalistas hindus, capitaneadas muito particularmente pela figura de Modi, o candidato possivelmente vitorioso, pode ser a triste exigência da teoria de Tagore.
O desfecho da eleição em curso, que movimenta mais de 800 milhões de eleitores, deve colocar Narendra Modi no posto de primeiro-ministro. Se considerada sua atuação até aqui, há suficiente razão para preocupação sobre a capacidade e a disposição de Modi em moderar seu nacionalismo de base racista e ideológica.
Atendendo às doutrinas que remontam, mesmo que mancamente, ao nacionalismo de casta, Modi é verdadeiro hindu, como definiu Savarkar, pois considera a Índia sua Terra Santa, para além de sua mera pátria. O problema é que o grande “outro” é o povo islâmico que vive na Índia, mas tem sua terra santa em Meca e outros inadmissíveis lugares a oeste do rio Indo. A grande acusação que pesa contra Modi é, justamente, a de deixar matar muçulmanos por não querer liderá-los.
Ainda que a religião hindu seja anterior, o nacionalismo hindu foi montado e codificado, via Savarkar, usando parâmetros das três grandes religiões monoteístas do mundo. A Páscoa cristã que se celebra no dia de hoje tem suas raízes na páscoa judaica referente aos acontecimentos ligados à libertação do povo de Israel. A celebração instituída por Moisés transcende o caráter religioso e se configura mesmo como nacionalismo. Porque a autodefinição de Israel como povo de cultura e características próprias e seu movimento de autodeterminação em sair do Egito em direção à Terra Prometida, inauguram um padrão que se repetiria através do mundo e se tornaria internacionalista pelos cristãos. O fato é que Savarkar se vale dessa forma de definição sintética de nacionalidade e o secto que cresce a partir dele não consegue se reformar e se internacionalizar, nem mesmo em relação aos demais grupos que dividem a história dentro de suas fronteiras.
Sem deixar de admitir o valor histórico dos movimentos nacionalistas e a legitimidade da busca da identidade pela afirmação das diferenças, a humanidade deve sempre ser respeitada como uma unidade maior e acima de quaisquer divisões e classificações. Assim, judeus, cristãos, muçulmanos, hindus e outros podem professar sua fé atrelando-as ou não a uma identidade “nacional”, mas a afirmação da diferença não pode ser usada para subjugar o que se julga “diferente”.
O partido e as demais organizações às quais Narendra Modi está filiado não tranquilizam a comunidade internacional sobre sua visão da dignidade da pessoa humana. Modi pode vir a ser excelente primeiro-ministro, mas precisa dar logo as garantias de que será primeiro-ministro da Índia e não apenas do seu fanatismo.
A matemática indiana orgulha-se de ter descoberto o zero. A partir daí seus sábios sabem que são irmãos o que é e o que não é. E que quem quer dominar os outros é porque não soube se dominar. Não é pois pela política que a Índia pode ser compreendida.
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PAULO DELGADO é sociólogo.