A SOCIEDADE FORA DO JOGO

O Estado de S. Paulo – 14 de outubro, 2020

À parte expor um ponto de vista e alguma escala de valores o mexerico que envolve a indicação para novo ministro do Supremo rouba a cena. A reconstituição do Tribunal Superior pela reprogramação pessoal de seus membros é o desfecho ameaçador do efeito cumulativo de funcionar como corte individual. 

É difícil analisar a grandeza de uma indicação se não é considerado pequeno elevar-se artificialmente ao alto. Um indicado mata-borrão, escolhido para absorver interesses e não pelo mérito, pode, sim, um dia virar ministro.  Assim, a crítica não se aplica ao magistrado pelo fato de ser do Piauí, terra querida, filha do sol do Equador, mas a alguém disposto a ser peça na charada de decisões combinadas.  

Como nós não temos unidade sobre as exigências do espírito não há um eixo comum para ver as coisas. O que parece transparente pode ser indecente, e o opaco brilhante. Poder é devoção e o fervor de agradar uma profundeza da vida política. A atual indicação para o Supremo parece nudez escondida na cegueira. 

Ninguém sabe ao certo de onde o presidente tira a energia para formar seus ossos. Seu apetite não muda com as circunstâncias. O que temos visto são as circunstâncias se ajustarem ao seu apetite. Farejadores de ocasião se aproximam e por um tempo andam na mesma direção. 

Liberado pelo costume de considerar o país um rio sem margem o presidente vai formulando sua visão das coisas sem temor. Como um líder tradicional, nadador que imagina jamais se afogar, está à vontade em seu jogo sem sutileza, como no velho aforisma prussiano: confia em mim, saia da toca, disse o galo à minhoca.  

Mas quando ninguém mascara mais sua verdadeira intenção estamos diante de decisões alienadas da natureza das instituições e dos interesses da sociedade. A sucessão no Supremo não é glória jurídica, militar, evangélica, liberal. Seus arredores são outros, estão no território da vacina para estagnar a aflição de poderosos socialmente inseguros.  A indicação não é aurora, é decomposição tardia de outrora. O ministro, denominador comum do crepúsculo de uma era.

Por isso, um currículo são as boas relações que o indicado estabelece com altos poderes em sua conduta e sentenças. O de papel, placas com telefones atenciosos nos canteiros de Brasília oferecem teses customizadas. Sem etiqueta pública o relacionamento é como mescalina, ou tubaína, um alucinógeno natural que mascara a dupla notório saber/reputação ilibada, esta sim, perigosa substância de que é feita a autoridade. 

Se o governo federal não liga para o fato de que o Brasil é um desafio econômico que interessa a todos é desnecessário imaginar que se dê conta de que é primordialmente um desafio espiritual. Se o país se afogar, a razão só virá de outro mar, como ocorre com nossas crises políticas. 

Não adianta resmungar se quem não sabe plantar tem força para atrapalhar a colheita. Qualquer ministro que chegou ao Supremo por mérito deve se sentir esmagado pela realidade, cujo sofrimento maior é saber da fragilidade de uma corte improvisadora, ajustada ao poder de cada um.

Os ajustes que estão sendo feitos, com tal desenvoltura corporal e vocabular, como não inclui até agora o autoexame por parte de nenhum dos três poderes, revelam que os interesses atendidos são suficientes e a sociedade está definitivamente fora do jogo. 

Não há medida ou parâmetro. Todas as conveniências pessoais concordam entre si e os membros dessa monarquia em movimento usufruem do tempo da república com tal leveza que é difícil dizer quais segredos incentivam coreografia tão sincronizada à luz do dia.  

Nem é verdade que todos são súditos da lei. Alguns usam a razão do outro e a arranja como consequência que facilita as coisas. O que ocorre entre as elites dos três poderes é resultado das afeições entre os mandantes. O arranjo uma disciplina. Mais uma vez os condescendentes com a ação do presidente não se culpam, pois tudo combina com o preconceito que se tem dele.

O presidente que se equilibrava entre forças antagônicas sentiu o pêndulo a seu favor. E no trapézio em que balançava sua credibilidade recebeu de mão beijada a chance de alterar a matriz de sua má institucionalidade. A renúncia antecipada do mais velho cumpriu o papel pedagógico de realçar as tendências políticas em conflito.  E logo o presidente é informado que pode vestir como luva o episódio e assim justificar a nomeação prematura do mais novo. Se é assim que funciona, assim fique. O pão-nosso-de-cada-dia assado no tempo de fervura do Supremo.  

Nem sempre toda a culpa é de presidente. Quem o assombrou com a solução para aliviar sua dor de cabeça pessoal conhece bem o ritmo da investigação legal. E provavelmente a ideia de estancar a autodestruição geral transformou tapinha nas costas em mercado de favores.

Dois amigos foram imediatamente descartados e um terceiro inesperado amigo se tornou o maior amigo. Lembra verso de poeta suíço sobre coalisões políticas oportunistas. Embora tosco, se encaixa dolorosamente bem: Quando inimigos brigam, o cheiro não é o melhor.  Mas se reconciliam, ah o fedor é bem pior!

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Paulo Delgado
Paulo Delgado
Sociólogo, Pós-Graduado em Ciência Política, Professor Universitário, Deputado Constituinte em 1988, exerceu mandatos federais até 2011. Consultor de Empresas e Instituições, escreve para os jornais O Estado de S. Paulo, Estado de Minas e Correio Braziliense.

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