A VOLTA AO MUNDO EM 50 DIAS
As cadeias globais de valor, braços modernos da logística, são realidades objetivas que definem o sucesso de empresas e países. Ligar da forma mais eficiente possível múltiplos locais de produção aos mercados consumidores garante um lugar ao sol na competição global.
“Enquanto nossos interesses subjetivos forem de encontro a leis objetivas, perdas serão inevitáveis”, foi a lição que Deng Xiaoping tirou como observador privilegiado das políticas da utopia maoista. Expresso somente anos depois com maior clareza e abrangência, o desacordo de Deng contra Mao começou a ser público, mesmo que brandamente, a partir de 1961. Se por um lado o desacordo lhe custou anos de exclusão, o caráter um tanto quanto brando garantiu-lhe a sobrevivência. E os dois, em conjunto, alçaram-lhe ao poder quando Mao já não mais estava ali.
Após a morte do Grande Timoneiro, Deng iniciou as reformas pragmáticas que, ainda em curso, fazem a China apresentar três décadas de crescimento médio anual do PIB na casa dos 10%. Pelo plano de Deng, o poder político do partido único continuaria preservado, mas os interesses subjetivos da liderança do país passariam a caminhar, sobremaneira, pelos veios abertos das leis objetivas da economia e da engenharia.
O quiproquó da semana que passou gerado pela ida do navio de guerra americano USS Lassen para águas em torno do disputado arquipélago Spratly é um exemplo disso. A retórica publicada ruge enquanto a burocracia aciona seus canais para por panos quentes. O que vale é a última, todos sabem. É importante internamente o governo chinês bradar poder, autonomia e projeção internacional. Mas nada de brigas antieconômicas com os EUA. Não por enquanto. Nada que mine o objetivo primordial do crescimento que dá o sustento para todas as subjetividades. A ideia deixada por Deng é a de não exercer na prática o que prega a bravata.
Enquanto isso vão trabalhando com galhardia tornando as leis objetivas em seu favor. A ferrovia Yuxinou, ligando Chongqing a Duisburg, é exemplo disso. Uma das Fornalhas da China, pela força do Partido Comunista, o hábito de comer pimenta forte e o calor insuportável o ano inteiro, Chongqing é uma megalópole incrustada à beira do Rio Yangtze. Está localizada a mais de mil quilômetros da costa em linha reta. Apesar da distância, é um porto bastante movimentado e o mais remoto a operar comércio internacional na China. A natureza moldada pelo homem possibilita o transporte de contêineres pelas águas do Yangtze, de Chongqing até Xangai. São três dias e meio de navegação atravessando as eclusas das Três Gargantas. Essa conexão hidrográfica garante a crescente pujança de Chongqing, que recebe cada vez mais empresas para empregar a maior diáspora de camponeses da atualidade. De Xangai a produção de todo o vale do Yangtze ganha o mundo. Excelente, mas ainda assim um contêiner embarcado em Chongqing leva trinta e cinco dias a bordo de navio para chegar a Roterdã, maior porto da Europa. Passando pela rota mais rápida que é, nesse caso, o Canal de Suez.
Assim, o governo chinês, que vê longe, investiu na intermodalidade. Abrindo um caminho de ferro até Duisburg, na Alemanha, levou o tempo de transporte cair para a casa dos quinze dias. Localizada no Vale do Ruhr, Duisburg é ligada artificialmente ao Rio Reno. Ali foi construído o que é hoje o maior porto do mundo não localizado na costa. De lá a mercadoria prossegue para Roterdã, ou ainda para a Antuérpia, o segundo maior porto do continente. De Roterdã a Colón, no Panamá do lado Atlântico, mais quatorze dias. Atravessando dali para o Pacífico chega em Xangai em 22 dias. Mais aqueles três dias e meio e se está novamente em Chongqing. Ou seja, um contêiner pode dar a volta ao mundo a partir do meio da China em 55 dias.
Mas os chineses continuam trabalhando para diminuir mais 5 dias na viagem. O canal bi-oceânico que vão construir na Nicarágua servirá para isso. Muitos criticam a iniciativa taxando-a de inviável, pois está sendo construído para que passem navios de tamanho não suportado em portos americanos, por exemplo. Bem, é improvável que os americanos não se adequem a condições que trarão maior competitividade a suas próprias empresas. Ainda que os chineses tenham mando do Canal.
Contra-intuitivamente, dos anos 1960 para cá, apesar dos avanços logísticos que aceleraram o transporte de mercadorias, o efeito negativo da distância sobre o volume comerciado só fez aumentar. Ganhos de escala e redução de tempo são cruciais e devem andar em conjunto. A China, dirigista que o seja, passou a lidar com isso brilhantemente ao fazê-lo em favor de suas empresas, sempre impulsionadas à expansão.
*****
PAULO DELGADO é sociólogo.