ADEUS PETRÓLEO
Correio Braziliense – domingo, 1º de Maio de 2016.
A corte do rei Salman bin Abdulaziz Al Saud provoca sentimentos contraditórios ao lançar, no início da semana, 84 páginas de um documento definindo a estratégia da Arábia Saudita para superar sua dependência da venda de petróleo. O plano foi anunciado pelo príncipe Mohammed bin Salman Al Saud, rapaz de trinta anos e o mais jovem ministro da defesa do mundo. Metido atualmente em quatro guerras regionais tem tudo arquitetado por seu pai, o rei, para se tornar um dos mais longevos governantes do mundo. Se Alá o conceder, é claro.
À frente de uma das mais bem equipadas forças armadas em operação, a Arábia Saudita está no local mais atribulado da atualidade. E vivendo período de especial atribulação, o príncipe deseja que a diversificação econômica venha pela atração e desenvolvimento da indústria armamentista no país. Esse é o lado brutal, antiquado, sombriamente realista. Sai a poluição do petróleo, entra mais míssil no ar. O outro lado do financiamento desejado pelo país, em aperto com o fim da farra petrolífica, é o caminho liberal: privatização em larga escala, inclusive de uma trilionária parte da joia da coroa, a estatal Saudi Aramco. Espera-se que outra grana irá jorrar da terra sagrada do Islã, de olho no futuro, com a mão na garganta do inimigo.
A Arábia Saudita tem importância cada vez mais desproporcional ao tamanho de sua economia e população. Suas ações arrojadas preocupam e desconcertam. Todavia, são dotadas de toques de fina estratégia, não há como negar. Isso se vê, por exemplo, ao se protegerem, pelo extremo oposto, da resoluta decisão de manter o mundo encarcerado ao petróleo ao jogarem os preços ao chão numa briga com EUA e Irã. Buscam se desvencilhar de tal dependência eles mesmos, ao ver que a política internacional pode estar perto de forçar o mercado a se curvar diante da responsabilidade climática de longo prazo. Compromisso inadiável na busca de redução drástica da emissão de gases do efeito estufa e da imundice e barulheira que está ficando o mundo.
Afinal, não é mera coincidência, que o plano saudita tenha vindo poucos dias depois da assinatura em Nova York do Acordo de Paris sobre mudanças climáticas. Finalmente um relevante acordo no âmbito da ONU. 2015 foi o ano mais quente já registrado no mundo desde quando começaram as medições no planeta lá em meados do século XIX. Uma embalada de anos cada vez mais quentes pode decretar o fim da espécie humana. E quem não quiser ser racional, seja pelo menos inteligente e egoísta. A presença de dióxido de carbono na atmosfera está hoje um terço maior do que em 1950, época em que cruzou a barreira jamais rompida em muitos e muitos séculos. Isso deriva diretamente da matriz energética ancorada em combustíveis fósseis que vem esquentado a terra e matando aos poucos a diversidade da vida.
Por isso, é difícil não pensar nos projetos que animam boas cabeças na terra. E o Brasil, que sempre se animou com pensamento único, poderia bem mudar de rumo e dar o exemplo. Primeiro foi o pau-brasil. A ele seguiram-se cana-de-açúcar e ouro. Depois o café. Quando descobriu o Estado, esqueceu a sociedade, os cientistas, a nova realidade da energia. Virou essa ideologia do próprio Estado. E trabalhadores, muitos intelectualizados, mataram-se pelos ideais nacional-desenvolvimentistas de seus empregadores, dependentes do Estado. E embora o Estado, na busca da industrialização, não tenha ficado tão monocromático a princípio, no fundo impôs ao país o automóvel como único meio de transporte. Única conquista da civilização para nossos governantes o carro é um cidadão de quatro rodas que suga para si todas as possibilidades de outra energia, limpa, nos movimentar de forma mais coletiva.
Com o pré-sal, parecia não haver dúvida que o petróleo voltava a ser a panaceia nacional. Deus de todas as curas bancaria tudo, de investidores a beneficiários da rede de proteção social, de burocratas a candidatos nas eleições nacionais, escola, hospital e bobagens urbanas na Região dos Lagos. Garantiria, ainda, projeção internacional e renovado poder na estrutura de governança global.
Hoje, pela primeira vez, é o mercado que rege o preço do petróleo no mundo. A OPEP está muito enfraquecida e o que consegue só consegue com a ajuda da Rússia. Calcularam mal, no Brasil, o desenrolar das coisas. Com o anúncio de Riad o petróleo, definitivamente, não é mais o fim e, não sobreviverá o país que desejá-lo como meio. Enquanto trens, metrôs e uma nova mentalidade social e política não vêm, que ele não seja mais visto como síntese estratégica de desenvolvimento de país continental. Afinal, nem na Arábia Saudita o respeita mais.
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PAULO DELGADO é sociólogo.