Além do encouraçado
Correio Braziliense e Estado de Minas – domingo, 4 de Maio de 2014.
Para cada presidente americano existe um sucessor que vem para realinhar a visão de mundo do país. Porém, por mais radical que pareça a mudança, os EUA conseguem manter, por conta do enraizamento de suas instituições e da clara noção hegemônica que possuem nos assuntos globais, uma linha de equilíbrio sobre a agenda internacional. É isso o que gera e conserva poder. A abordagem muda, mas a necessidade de manter-se presente não retrai. No máximo oscila de uma região para outra, de um método para outro. Se formos capazes de dar um desconto para o anti-americanismo de natureza ideológica, é algo admirável, mesmo que pareça, erroneamente, natural. Essa onipresença sobre a porção de terra que lhe interessa, que era natural para impérios, é um exercício por vezes extenuante para uma democracia imersa em uma ordem que sacralizou atributos democráticos. E que busca – e nunca arredou pé da pretensão – englobar todo o planeta.
Apesar de estar conseguindo se manter há décadas com a mão forte sobre o manche que direciona os caminhos da política e da economia global, é quase tão comum ouvir ferozes – e muitas vezes compreensíveis – críticas, quanto deboches. De fato, há uma longa lista de mancadas. E, às vezes, chega mesmo a parecer, como reclamava Otto Von Bismarck, o grande estrategista que unificou a Alemanha, que a providência divina certamente é “especial” para com os Estados Unidos, assim como para com os tolos e os ébrios. Mas, no computo geral, há uma garra, uma noção de obrigação e interesse, que explica porque conseguem o que querem. Mesmo que aos trancos e barrancos.
A viagem de uma semana realizada por Barack Obama à Ásia, finalizada poucos dias atrás, era para ser a principal demonstração cerimonial do que há de mais significativo na política externa de seu governo. Obama, nascido em um arquipélago situado entre a América do Norte e a Ásia, e crescido, parte da infância, no sudoeste asiático, não desconhece nem mal-compreende as forças que deslocam o centro do poder global para o Pacífico. Seu governo quer uma América cada vez mais próxima e interconectada com a Ásia. O que já acontece por meio de trocas comerciais “naturais”, Obama quer especialmente competir com o processo de expansão de poder chinês na região.
A menina dos seus olhos, a Parceria Trans-Pacífico, no entanto, não decola e passa a desconfortável impressão de que Obama está sendo enrolado. Todavia, o que é mais importante formalizar está sendo feito: há uma alternativa americana ali ! . E proposta a proposta, viagem a viagem, acordo a acordo, isso vai se firmando. A doutrina do chamado “século pacífico da América” é parte de um movimento em direção a prioridade atual de opor-se, suavemente, à China.
Enquanto Bush se chafurdou no Oriente-Médio, o Extremo-Oriente avançou a braçadas, numa sincronia natural que acabou trazendo uma massa de poder enorme para a região, ao mesmo tempo que fez a China a segunda maior economia do mundo. Hoje em dia, as três maiores economias do mundo têm costa no Oceano Pacífico. Duas delas, só no Pacífico. Os Estados Unidos, que estão tanto no Pacífico, quanto no Atlântico, chegaram ao posto de superpotência em um mundo dominado pela força acumulada no Atlântico Norte desde a Revolução Industrial. Hoje, para manterem suas mãos sobre as rédeas do jogo global, precisam se constituir em uma nação cada vez mais do Pacífico atenta à ostensiva presença chinesa. Mas não será simples, pois os grandes não dormem e até o todo-poderoso aliado ministro alemão Wolfgang Schäuble, no meio do mês em Washington, deixou escapar que deve-se preferir a Europa.
O diagnóstico trazido pela equipe de Obama é de que a visão de um mundo Texas-Petróleo-Mundo Árabe fez Bush se perder. No entanto, o que Obama está tratando é muito mais delicado e perigoso do que o que tratou Bush. É certamente onde está o maior interesse dos EUA no momento, mas a forma de assegurá-lo, sem o movimento de encouraçados para chutar a porta na Ásia, exige mais do que a massiva entrada de dólares.
E Obama tem mostrado possuir o jogo de cintura necessário. Em momento chave de sua passagem pela Ásia, mostrou que não quer ser oblíquo ao defender os interesses de seu país. Ao lado da primeira presidente mulher da Coreia do Sul, Park Geun-hye, tocou no ponto sensível das atrocidades cometidas por japoneses na Segunda-Guerra contra mulheres dos países por eles ocupados. E condenou o Japão que insiste, até hoje, em não pedir desculpas. Esta é uma posição de honra coreana, e também chinesa. Ao não tergiversar em criticar seu maior aliado no que ele está visceralmente errado sinalizou que a contenção da China não será nem a custo zero, nem a todo custo.
*****
PAULO DELGADO é sociólogo.