Aplicativo, a volta do lotação
O Estado de S. Paulo – 09 de dezembro de 2020.
A facilidade de usar, como o ar, e o caráter espetacular e simples da invenção tem sido um entrave para entender o ataque a padrões civilizatórios que está por trás do casamento da informática com a internet.
A rede e suas ferramentas tomaram o lugar da cautela e da cultura. Sob a capa de parcerias técnicas e funcionais, o aplicativo nem sempre é o que parece. Cega o poder, muda o tutor da burocracia, viola a obediência às leis e ao dever de observar o interesse público.
O deslumbramento com a informatização de tudo, sem controle, fiscalização, garantia de qualidade e atendimento, encobre o fato de que o uso desregulamentado da tecnologia aumenta a falha humana na parte principal que nos distingue dos predadores, a ética e o interesse coletivo. Um aplicativo pode ser um veículo rápido de um crime perfeito. Ou fazer o ilegal parecer legítimo.
A competição pela superioridade dentro dos governos pode levar bons ministros ao exagero. O mais frequente é o elogiado não aceitar ponderação e diálogo que perturbem seu conforto. A boa autoridade da área da regulação sabe que a verdade sempre suporta um exame. E se a nova verdade não constar da Constituição, ela não pode ser implantada por decreto. E de nada adianta usar a expressão “liberdade de mercado” para esconder o desejo de conceder autorizações individuais. Liberdade, a liberdade costuma fingir que é anjo para poder agir como fera.
Se a autoridade desconhece a Constituição e assim leva outras autoridades à ilegalidade, a corrosão da vida em sociedade é certa, como a ferrugem deteriora o ferro. Um governo liberal não é um governo inconstitucional. O liberal sabe que o liberalismo não significa tolerância com atividades econômicas tocadas de forma desregrada.
Observe os constantes e rotineiros acidentes mortais com ônibus. Aguarde o ônibus-aplicativo, a evolução do descontrole que produziu os desastres de Itaguaí e João Monlevade. O que está acontecendo são tragédias programadas pela improvisação e a confusão regulatória que não protege o cliente, desconhece a respeitada tradição das empresas sérias, compara regras para concessão de ferrovia com rodovia, trilho com estrada, carga com passageiro, commodities com lotação.
Ao autorizar um serviço regular inadequado de transporte de passageiros, pressionado pelo lobby do ônibus sem rodoviária, visto como lotação fretado por aplicativo, o governo mira na força de atração do potencial do mercado desregulado, no lucro de só sair lotado e numa viagem só, por itinerários próprios e rotas superpovoadas. Pura extorsão de demanda. Não estamos falando de transporte público, muito menos do interesse social do usuário. Não é também fretamento contínuo de empresas e escolas para trabalhadores e estudantes ou fretamento eventual ou turístico, já regulamentados.
O que está em vigor é o precário e dirigido critério da autorização para impulsionar a competição predatória. Autorizar a não ter responsabilidade pública e poder fugir de rotas impopulares, de horários regulares e de ter de sair com poltronas vazias. Sem falar no risco que correm os passageiros e do caráter clandestino que pode rapidamente caracterizar a modalidade.
O decreto que deu origem a essa precariedade regulatória tem como objetivo instituir a exploraçãio do serviço público de transporte rodoviário interestadual e internacional de passageiros pelo regime de autorização. Como a Constituição diz expressamente que o regime de concessão e permissão se fará sempre por licitação, toda a iniciativa é inconstitucional e desorganizadora do sistema de transporte coletivo.
Como está travada sua discussão no Ministério da Infraestrutura, no Senado e no Supremo, revela a gravidade do jogo não cooperativo que prevalece entre os três Poderes, pondo em risco a garantia de deslocamento e o direito à locomoção segura do cidadão. Se a visão do governo prevalecer., o que teremos no País é o princípio da escolha livre dos itinerários. Não é preciso dizer que somente os lucrativos serão ofertados à̀ população. Os passageiros de localidades que não forem consideradas economicamente viáveis perderão o direito de andar de ônibus.
Evidente que chamar isso de livre concorrência ou regime de liberdade de preços é uma boa maneira de dizer que não haverá obrigatoriedade de manter o serviço seguro e adequado, nem o controle público das tarifas cobradas dos usuários.
Do jeito que está, o que acontece não é bem o compromisso com a competitividade leal e transparente, razão da exigência de processo de licitação. O que está havendo é um acúmulo de discricionariedade nos computadores da burocracia. Onde o gestor estatal, seguro de que tudo pode, anda escolhendo quem vai fazer parte do setor mais lucrativo do mercado de transporte do País. O que nunca será deficitário, pois só embarca quem lhe interessa.
Por mais modernos e legais que pareçam os critérios de escolha, além de não operarem sobre o mundo real do transporte de passageiros, simplesmente não são os previstos pela Constituição.
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