As astúcias do futuro

Correio Braziliense e Estado de Minas – domingo, 8 de julho de 2012.

Se aparecesse fumaça, pela chaminé, a casa perdia todos os utensílios domésticos que possuía, além de receber uma mensagem para colocar no pescoço de todos os seus membros. Estes, então, eram forçados a sair pela rua para serem humilhados por terem cozinhado só para a própria família. É que na época da revolução cultural, especialmente nas áreas rurais, as cozinhas eram comunitárias e obrigatório cozinhar e comer juntos. Sob a filosofia moral do mais rasteiro socialismo, o maoísmo desse período quase destruiu a riqueza da culinária chinesa obrigando todos os agricultores a participar de cooperativas e plantar as mesmas coisas que mandava o Estado. A China, com seus caldeirões, tachos e tigelas, tinha um só gosto e o mesmo cheiro meio azedo por toda parte.

A maneira brutal de se coletivizar a produção e consumo de alimentos contrasta com a origem mais remota da busca da comida e da função social de se partilhar a mesa. A Science, prestigiada revista científica dos Estados Unidos, publicou, semana passada, pesquisa onde informa que arqueólogos americanos e pesquisadores chineses encontraram no sul da China o que pode ser o pedaço de cerâmica mais antigo do mundo, com 20 mil anos de idade. Os cientistas acreditam que os fragmentos encontrados “são parte de um pote de 20 centímetros de altura e de 15 a 25 centímetros de diâmetro. Poderia ser um caldeirão usado para cozinhar alimentos ou para fermentação de bebidas alcoólicas”.

Em entrevista à BBC News, o chefe da pesquisa, Ofer Bar-Yosef, da Universidade de Harvard, disse que cozinhar em caldeirões permitia que as pessoas conseguissem mais nutrientes dos alimentos e, possivelmente, partilhassem o calor em torno da panela. E que um dos possíveis motivos para a invenção da cerâmica é que, há 20 mil anos, a Terra passava pelo período mais frio em um milhão de anos. O professor Gideon Shelach, da Universidade Hebraica de Jerusalém, especula, na mesma matéria, que também pode haver um motivo mais social para a invenção: “as pessoas estavam em grupos maiores e você precisava de atividades sociais para lidar com o aumento das tensões”. O professor acrescenta que antes, “acreditava-se que o início da fabricação da cerâmica estava associado à agricultura e a um estilo de vida sedentário”. O desafio agora é tentar descobrir o que era cozinhado há 20 mil anos.

A condição de nômade ou sedentário, caçador ou agricultor, é uma divisão clara ao longo da história. Mas não explica, por si só, tudo a respeito do hábito consciente de experimentar ou produzir alimentos. A preocupação com as consequências das ações humanas nem sempre é o fator principal das escolhas e descobertas. A decisão de procurar e cozinhar alimentos, por exemplo, sempre foi muito arbitrária e sujeita às condições e possibilidades da vida local, acabando por distinguir o Oriente do Ocidente e ajudando a caracterizar culturalmente povos e nações. Por isso, de pouco adianta esmagar a liberdade dos desejos humanos. Pois conhecer coisas novas e se adaptar a elas parece ser muito mais uma questão de oportunidade do que de inventividade…Ou de responsabilidade.

Nem tudo na China é imitação de jade, pérola falsa ou seda sintética. Depois da abertura econômica, nos anos 1980, os agricultores puderam voltar a cultivar suas hortaliças e a culinária estatal deu lugar a uma profusão de restaurantes. O almoço chinês é um banquete, servido num crescendo, como um bolero de Ravel, exibindo a variedade de tudo: cozido, ao vapor, assado ou frito. Hoje, até casamento é em restaurante. E mesmo quem come pior, come infinitas vezes mais e melhor do que nos tempos da insensatez.

A panela chinesa de 20 mil anos sugere uma vida mais gregária e saudável. Mas o mesmo hábito que pode libertar, pode ser usado para oprimir. Ao fazer caricatura da responsabilidade coletiva, a ação civilizadora torna-se seu avesso e promove a brutalização do ser humano. Da mesma forma que no passado remoto a vida livre permitiu encher as recém-criadas panelas, em outras ocasiões, a agricultura planificada gerou fome e miséria. Bastou a produção e consumo familiar serem novamente liberados na China, para o país nunca mais passar por carestia. Quando a autoridade investe em regras que não se harmonizam com a realidade a vida de gerações será estragada.

A história humana é uma sequência de usufruto e proibições que espanta a todos. Contém um alerta: os seres humanos estão igualmente sujeitos ao despautério e à redenção. O primeiro é especialmente forte nas nações de índole imediatista e tendência para o pânico. Pois as habilidades humanas para enfrentar as astúcias do futuro dependem muito do exato conhecimento da história das suas privações.

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PAULO DELGADO é sociólogo. Foi deputado federal.


Paulo Delgado
Paulo Delgado
Sociólogo, Pós-Graduado em Ciência Política, Professor Universitário, Deputado Constituinte em 1988, exerceu mandatos federais até 2011. Consultor de Empresas e Instituições, escreve para os jornais O Estado de S. Paulo, Estado de Minas e Correio Braziliense.

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