As bruxas existem
A máxima da cultura espanhola “no creo en brujas, pero que las hay, las hay” anuncia que a passagem da barbárie à civilização é um longo processo povoado de fantasmas.
Um dos mais originais e criativos intelectuais nos EUA foi Mancur Olson, conhecido por suas perspectivas conservadoras. Olson era ao mesmo tempo economista e cientista político. Um de seus argumentos mais pujantes é o que sustenta que a origem do Estado remonta à atuação do crime organizado.
Para Olson, o Estado se estabelece a fim de extrair tributos e obediência de uma população em troca de proteção e alguma ordem, nada mais sendo, portanto, do que um “bandido estacionário”, o qual, num processo evolutivo, vem para substituir os diversos “bandidos errantes” que incomodavam a região.
Segundo Olson, enquanto os bandidos errantes têm apenas o incentivo de saquear, extorquir e destruir — já que não possuem nenhum pertencimento ou compromisso duradouro com aquela população —, os bandidos estacionários, embora possam começar como tiranos, tendem a evoluir até alcançar formas mais sofisticadas de organização política, como é o caso das próprias democracias liberais.
Ainda que seja uma visão meio sombria do que vem a ser o Estado e sirva como advertência sobre um Estado que se imiscui demais na vida da população, a lógica de Olson é fundamental para nos alertar sobre o mundo de perigos muito maiores e piores representado pelos inúmeros bandidos errantes que existem por aí.
Na teoria de Olson, a condição básica para a existência dos bandidos errantes é a situação de anarquia. Pois bem, é justamente a anarquia que o Estado, com o Estado de Direito, vem para substituir. Ora, mas qualquer um que estudar os princípios básicos das Relações Internacionais saberá que a teoria mais influente, sobretudo pela perspectiva da chamada escola Realista, é a de que vivemos num mundo anárquico, porque de fato não existe um governo global e os organismos multilaterais, como a ONU e a OMC, têm capacidade de atuação muito limitada.
Sendo assim, atores de outros países podem ter incentivos para atuar como bandidos errantes para cima de Estados mal guarnecidos. E não custa lembrar que, ao longo da história, são vários os casos de nações que caem porque um ou alguns dos seus se prestam a abrir a porta para bandidos errantes, sejam eles Estados estrangeiros ou outras formas de organização forasteira.
Toda essa formulação de Olson pode acabar soando meio ultrapassada em meio ao curso cotidiano das sociedades democráticas modernas, mas seus insights básicos voltam a ter valor atualmente. Ainda mais quando coincide com um momento de revisão ampla dos impostos que sustentam as funções do Estado e as discussões necessárias sobre anseios de justiça social, além daquelas sobre o que se espera que o Estado entregue em retorno para a sociedade. No plano internacional, o fato se vê com a retomada do uso das tarifas alfandegárias tanto como forma de se fazer política industrial, quanto política confrontacional, sancionatória e empobrecedora de vizinhos.
Em tal contexto, é relevante lembrar que o Estado surge para exercer variadas funções governamentais necessárias para a proteção da sociedade em troca de impostos e obediência negociada. Essa negociação se institucionaliza por meio de uma constituição e diversas leis complementares que asseguram direitos às pessoas de cada país. No nosso caso atual, por exemplo, os diversos grupos sociais negociam sob ritos e práticas democráticas, estabelecidas por maioria, respeitando-se os direitos básicos constitucionais das minorias.
O trabalho de Olson sobre bandidos estacionários versus bandidos errantes delineia, assim, um caminho de progresso civilizacional, que culmina, idealmente, na democracia. Esta, ao se tornar mais representativa e ao transferir o poder para aqueles que expressam a vontade popular, melhora os incentivos para um governo eficaz e que promova o bem-estar social como um todo.
É o grau de civilidade que estabelece se será necessária a caça aos bandidos errantes, sempre que tentarem atuar dentro da jurisdição nacional. Por fim, “não creio em bruxas, mas que existem, existem” do dito espanhol lembra que muitas “caça às bruxas” são criações de “bruxas”, ou fantasmas de bruxas. Ou ainda, na tradição anglo-saxã, não esqueçamos que sempre aparecem por aí personagens análogos à Lady Macbeth — as quais, ainda que multifacetadas, merecem sim, de um ponto de vista do dano que causam ou buscam causar às suas sociedades, ser julgadas. Enquanto sua culpa não a consome, o desfecho trágico que é pessoal, no caso da peça de Shakespeare, fica socializado com todos, por conta da fraqueza das instituições de Estado frente à força dos sedentos por poder.