Casa de Boneca
Correio Braziliense e Estado de Minas – domingo, 26 de Janeiro de 2014.
Uma pequenina Ouro Preto de casas de madeira com mais de quinhentos anos nos fiordes da Noruega ardeu em chamas essa semana. Patrimônio da humanidade, Laerdalsoyri é uma tristeza longínqua que ajuda a lembrar como se pensa pouco a respeito dos pequenos países. A vida no interior desse mundo fissurado por gigantes pouco se lembra dos discretos. Talvez cansada de tanta luta de seu passado Viking, a Noruega se permite hoje ser um dos mais tranquilos países da Terra.
Caretas para muitos que amam o torpor da vida desorganizada; certinhos demais para quem vê dissimulação nos empecilhos que amam colocar por aí; muito bem de vida para o pouco poder real que detêm. Mas se alvos de certo desdém por alguns, são também modelo de sonho para o resto da terra por gente como o economista e agitador intelectual Jeffrey Sachs, consultor da ONU para assuntos gerais do mundo. De fato, como Sachs gosta de defender, estudos sob sua direção apontam que os três países escandinavos (Noruega, Dinamarca e Suécia) estão entre os cinco países mais notáveis do mundo.
Na Noruega, por exemplo, não faltam boas notícias cotidianas. Como a de que todos os livros publicados em norueguês em breve estarão digitalizados. Os quais, sem violar direitos autorais, estarão disponíveis na internet para quem quiser lê-los – tanto as obras dos escritores locais, quanto as traduções. Na terra de Henrik Ibsen, o maior teatrólogo europeu depois de Shakespeare, ler ajuda a entender o mundo. E por lá, cultura e educação, quem paga a conta é o governo. Mas governo que funciona bem e não interfere na liberdade intelectual. Financiado pela altíssima carga tributária de uma população educada, consciente e que não liga que seu dinheiro seja gasto para que todos tenham acesso a tudo o que é publicado no país. É um curioso caso de socialismo dos ricos onde, teoricamente, cada habitante do país tem o equivalente a um milhão de coroas norueguesas em seu Fundo Soberano regado a petróleo e gás.
Do alto de seus 833 bilhões de dólares, o Fundo de Pensão Global do Governo da Noruega é o maior Fundo Soberano do planeta. Seus ativos são inclusive maiores do que o próprio PIB do país, detendo investimentos nos quatro cantos do planeta. Gerido com ética exemplar, busca maneiras de chegar ao seu alvo de um retorno de 4% ao ano (exatamente o montante que o governo é autorizado a gastar dele no país por ano). Seu problema é que de 1998 até aqui deu em média 3,41% ao ano. Atualmente busca investir em construção de infraestrutura em países em desenvolvimento – o que não feito de forma ousada pela percepção sempre presente da corrupção como política de governo entre esses países. Na Noruega, 5º país no mundo com menos corrupção segundo a Transparência Internacional, a população não aceita que o fundo financie empreendimentos moralmente controversos, mesmo que deem mais retorno.
Comparado o crescimento médio do fundo com o crescimento médio dos PIBs e dos mercados de capitais dos principais países dos BRICSs nos últimos dez anos, logo se vê que a precaução norueguesa lhes afastou de uma rentabilidade maior nos mercados emergentes. Depois do baque que levou no colapso financeiro de 2008 (chegou a cair 14,5%), o fundo relaxou e passou a contemplar mais os vulneráveis mercados emergentes. Mas nessa semana o FMI reviu para cima sua expectativa de crescimento para 2014 e apontou, através de seu economista-chefe, Olivier Blanchard, que os países desenvolvidos devem crescer numa média de 2,2% e a Noruega passou a ter dúvidas sobre onde investir sua riqueza. Dúvidas de investidores cautelosos que lembram as angústias dos personagens do teatro de seu conterrâneo Ibsen, autor de Casa de Bonecas, onde a face escura do triunfo econômico é a vida mal vivida que nasce da ambição, essa fraude contra a felicidade.
Esses dias, curiosamente, nossa presidente esteve em Davos e notou que o mundo não vai à frente sem investimento estrangeiro. E que esse ano, dada a recuperação dos EUA, corre-se especial risco dele rarear. Aprofundar relações de confiança global que tragam investimentos ao Brasil e abram espaços para investimentos brasileiros lá fora deveria ser uma prioridade maior de uma gestão moderna que coopere para o desenvolvimento e a paz no mundo para as economias que se integram a ele.
Afinal, como escreveu en passant Blanchard em seu comunicado, “o crescimento em mercados emergentes, embora menor do que no passado, continuará alto.” Isso é uma conjuntura histórica só reversível por guerra. E dificilmente haverá guerra enquanto houver globalização que possibilite a convergência da periferia ao centro com vantajosa remuneração entre os ricos e alguma distribuição para os pobres.
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PAULO DELGADO