Desengajamento
Estado de Minas e Correio Braziliense – domingo, 27 de novembro de 2011.
Desde o fim da União Soviética, o valor das ações americanas, na economia e na defesa, vem diminuindo progressivamente. Também por isso o mundo unipolar não se realizou. Os erros sucessivos da era Bush, sua doutrina da “guerra preventiva” contra o terror e seu horror à democracia e à corresponsabilidade afastaram os Estados Unidos do Protocolo de Kyoto e da Corte Internacional de Justiça. E completaram o quadro geopolítico de distanciamento entre as nações. Na agenda mundial, a animosidade ostensiva agora não domina, mas o interesse comum também não predomina. Com isso, a expectativa do mundo é revertida: da tensão de um único líder para a distensão a espera de algum líder.
Todos os aspectos da política internacional apontam para a dissolução dos traços em comum no relacionamento e cooperação entre as nações. Fracassos econômicos, problemas internos, diferenças culturais e forte assimetria da capacidade militar fornecem explicações sobre o aprofundamento das visões cada vez mais particulares e distintas sobre a política internacional.
Estamos na era do desalinhamento, o desengajamento como doutrina. O caminho da pluralidade com diálogo é o melhor que pode vir daí. Mas há também o pior, que é compreender o fenômeno como atalho para ações unilaterais e exercício puro do poder, militar ou econômico.
Paroquialismos nacionalistas, nessa época de reequilíbrio entre potências, são a fórmula para o desastre. É que a realidade de um mundo multipolarizado por blocos, cercado de protecionismos econômicos, reforçado pela má vontade na busca de soluções comuns para crises e sem legitimidade para propor e sustentar ações de segurança internacional partilhadas, se parece muito com a lógica da guerra-fria.
O certo é que introduzir a cooperação como atitude predominante nas relações internacionais esbarra em crescentes disparidades políticas. O que explica a persistência de mais de 30 guerras civis e outros conflitos entre vizinhos, em curso na atualidade. São tantas as sequelas do colonialismo europeu e das intervenções russas e norte-americanas que em muitos países fronteiras impostas não dissolveram nações. E suas comunidades étnicas continuam em busca de autodeterminação. Nunca pela conciliação ou o diálogo, sempre pelo conflito.
Não se trata de defender a formação de países pelas suas etnias puras, mas reconhecer que Estados de fronteiras artificiais devem ser governados de forma mais abrangente do ponto de vista de todos. Acolher toda a população na política do governo central é o primeiro passo para não ser obrigado a redesenhar seus mapas. Estabelecer limites para a duração de mandatos e proibir a livre circulação de ditadores pode também ser boa regra para proteger o patrimônio de dezenas de países pobres. A unificação pela integração física transnacional também ajuda a retirar do isolamento populações inteiras e diminuir o ímpeto separatista. O que conta é a realidade concreta das pessoas e esta deveria ser mais forte do que a tolerância a arranjos institucionais artificiais produzidos pelo jogo entre nações.
O reconhecimento do direito das nações agirem segundo seu interesse e cultura não significa automaticamente que é possível exercer esse direito. Para tudo há limites: tanto para a produção de armas de destruição em massa como para aberrações na aplicação da justiça por razões ideológicas ou religiosas, ou mesmo experiências econômicas absurdas. É preciso ter cuidado, pois desde que surgiram as multinacionais e a liberdade de imprensa, nada mais é “nacional”, tudo transborda e contamina todos os países.
É ultrapassado e insuficiente o sistema de regras que orienta a tomada de decisões em política internacional. Não há acordo abrangente e razoável sobre qual doutrina assegura a compreensão da justiça em situações de diversidade. Princípios parciais e tendenciosos continuam predominando nos principais organismos internacionais. O Fundo Monetário Internacional (FMI), que anda derrubando governos europeus, e a Organização Mundial do Comercio (OMC), centrados na lógica das grandes economias, são fortes responsáveis pela expansão desordenada do sistema comercial e financeiro, que alimenta as crises mundiais. Continuam desinformados e indiferentes ao fato de que mais de 80% do crescimento econômico dos países emergentes veio de empregos e empresas, comerciais e industriais, de pequeno e médio porte que não têm ações na bolsa de valores. É a livre circulação das pessoas, em boas condições de segurança, e a liberdade de oportunidade para todos que proporcionam renda individual, produzem bem-estar e garantem a paz.
O que se espera é que todos os países saibam até onde podem razoavelmente ir com suas ideias de liberdade e progresso. E que o discurso da política internacional vá além dos gráficos e estatísticas econômicas e incorpore as preocupações da vida em sociedade. Pois nunca esteve tão claro escolher entre a guerra ou a paz. E melhor agora, sem a retórica do “tudo ou nada”, que é sempre a responsável por todas as guerras.
Paulo Delgado é sociólogo. Foi deputado federal.