Enigmas da Rússia
Correio Braziliense e Estado de Minas, domingo, 4 de setembro de 2011.
Quando José Alencar, então vice-presidente da República e ministro da Defesa, atravessou o primeiro corredor da gigantesca fábrica dos imponentes caças Sukhoi e viu extintores de incêndio vencidos, computadores ultrapassados e muita poeira, pegou no meu braço e sapecou: “Isso aqui tá pior do que a pior fábrica de móveis lá de Ubá”.
Ironia síntese da decadência tecnológica e do abandono da economia do conhecimento, a competitividade soviética acabou imersa numa indústria mecânica fixada em guerra. Quando o deslumbrado Gorbachev — último governante da URSS — percebeu o descompasso entre a inteligência e a ambição do império socialista, mandou abrir o coração, igualmente empoeirado e com prazo de validade vencido, da irreformável União Soviética.
Vinte anos depois do fracasso do levante militar que, em agosto de 1991, pretendia restaurar o governo socialista, o governo da Rússia se negou a dar a tradicional guarda de honra para acompanhar a cerimônia de colocação da coroa de flores na sepultura dos jovens que morreram esmagados debaixo dos tanques golpistas. A atitude de desprezo dos atuais dirigentes do país por um dos acontecimentos históricos que permitiram sua chegada ao poder no Kremlin reflete um ensaiado passo para trás nas reformas políticas, econômicas e sociais pelas quais passa a Rússia.
Conta a lenda que, quando Vladimir Putin (ex-presidente e atual primeiro-ministro), à época agente da KGB e também espião da Stasi, a Policia Secreta da Alemanha Oriental (RDA), sentiu desmoronar os 70 anos do regime socialista, enfiou na gaveta suas credenciais à espera de tempos melhores. Em 2000, escolhido por Yeltsin para sucedê-lo, recebeu como tarefa manter o modelo de concentração econômica sob controle de grupos privados. Missão só possível nas mãos de quem viesse das antigas instituições de força e da tradição autoritária do país. A revisão negativa do movimento pelas liberdades civis, imprensa livre e reformas econômicas dos anos 1990 resultou no renascimento da burocracia à la soviética, fundida com a delinquência econômica e a corrupção que se apropriaram de todos os bens do Estado. Formada desde as privatizações da época de Yeltsin, a nova oligarquia econômica é hoje indissociável da oligarquia política, com as velhas empresas estatais nas mãos de seus antigos gerentes. O que explica a patética performance da Rússia como país com mais bilionários do mundo. A opção pela concentração e uso vertical do poder, sempre feita nas sucessões russas, é explicada por Gorbachev, agora na oposição, como se fosse a confissão de seus próprios erros e da fragilidade de suas convicções democráticas: “Naquele momento não era preciso ler livros, devia ver a realidade e a partir da realidade agir”.
Na Rússia, a transição tem sido radical: do excesso de ideologia do período da Guerra Fria para a era da ideologia nenhuma. O problema é que nenhuma nação gigantesca como aquela, com altíssimos índices de exclusão e pobreza e com forte tradição centralizadora e arbitrária desde o período czarista, pode viver sem utopia. O alcoolismo e as máfias, que fazem de Moscou a cidade mais violenta da Europa, substituíram a falta de sonhos ou senso de missão da terra de Tchaikovsky, Tólstoi, Marc Chagal, Gagarin e Dostoiévski.
Negócios e suas diversas formas de realizá-los, longe de serem de interesse comum, transformaram-se nos maiores atrativos da política russa. Começam, pois, a surgir sinais de insatisfação com a falta de liberdade no país que poderão movimentar as eleições parlamentares deste ano e a sucessão presidencial do ano que vem.
A previsão é que o “Rússia Unida”, partido de Putin, e seus aliados mantenham a dianteira com mais de 60% dos deputados eleitos. São tantos os magnatas que manobram os partidos viáveis que o ambiente lembra mais uma plutocracia do que uma democracia de fato. Temendo por sua Rússia na nova ordem de Putin, Alexander Solzhenitsyn, Prêmio Nobel de literatura, disse certa vez à revista The New Yorker: “O curso da história e da cultura mundial nos mostra que existem, e deveriam haver, autoridades morais. Elas constituem uma espécie de hierarquia espiritual que é absolutamente necessária para cada indivíduo e país”. Destruir líderes desse tipo foi, segundo ele, uma “forma para que todos pudessem agir da maneira que quisessem”. E o efeito desse processo tenderia a ser pior na Rússia, lamentou Solzhenitsyn, constatando a facilidade que tem seu povo de se moldar a quem tem poder.
Com a inércia da sociedade civil, falta de mobilidade social e uma aversão persistente ao jogo democrático, ainda é alto o deficit de confiança do país perante a comunidade internacional. O que adia os planos da Rússia de constituir-se como polo independente, e ter significado e influência na iminente multipolaridade do mundo.
Paulo Delgado é sociólogo. Foi deputado federal.