Escudos e Alvos

Correio Braziliense e Estado de Minas, domingo, 24 de julho de 2011.

O país do último Prêmio Nobel da Paz gastou no ano passado US$ 700 bilhões com suas Forças Armadas. Em seguida aos EUA vêm China, Reino Unido, França, Rússia, Japão, Oriente Médio, Alemanha e América do Sul (conforme o relatório anual do Instituto Internacional de Pesquisa e Paz de Estocolmo).

Buscar a paz se preparando para a guerra, vencer sem derrotar são lendárias formulações de chineses e romanos ainda atuais diante do ambiente estratégico internacional. Que fazer? Melhor que degolar prisioneiros e não recolher feridos, a mais forte tradição das guerras sulamericanas de independência. Tradição atualíssima nas tiranias da África.

No entanto, meios militares não nos protegem de tudo. Especialmente quando não existem mais fronteiras naturais e seladas. Muito menos na Amazônia, a melhor matriz energética disponível na maior bacia hidrográfica e corpo florestal contínuo do planeta, contornado por dois oceanos, majestosa cordilheira, inúmeras fronteiras nacionais. Economia, meio ambiente e sociedade são os três vetores do equilíbrio atual em direção à virtuosa ocupação do espaço desprotegido, sem unilateralismo ou ambição hegemônica. Cuidar dos escudos naturais para que não virem alvos desprotegidos. Liderar sem querer mandar.

Com efeito, a integração física e econômica da América do Sul tem os mesmos fundamentos dissuasivos e pacifistas de nossa política de defesa. E permite modernizar o arcabouço jurídico precário que rege as relações entre nossos vizinhos para aumentar a conexão e a interação interregional e global. Só benefícios partilhados articulam comércio e paz, dois dos maiores bens públicos internacionais.

O sonho de integração regional nasceu com seus processos libertários do início do século 19. De lá para cá é justo pensar que a integração estrutural e transnacional — essa que nos serve de maneira tão prática e direta — seja de fato o melhor caminho para a estabilidade.

As redes de conexões físicas que serviam a propósitos econômicos na Europa precederam a integração política, que só veio a ser alcançada recentemente. Criada após o fim da Segunda Guerra Mundial, a Comunidade Europeia do Carvão e do Aço é o próprio embrião da União Europeia. Pensada como um instrumento capaz de impossibilitar um novo conflito no continente, já que com ela a produção de dois dos principais insumos necessários tanto à paz quanto à guerra passariam a ter controle diluído supranacionalmente. A experiência européia remonta também à criação de Comissões Internacionais para abrir canais, construir estradas de ferro e coordenar a navegação em rios que cruzam vários países, sobretudo o Danúbio e o Reno.

Na América do Sul ainda predominam as forças da fragmentação. Assim, estimular a conexão dos países é estratégico para a incrementação do comércio, da livre circulação das pessoas e da paz.

Na Região Amazônica, a responsabilidade do Estado é essencial. Em virtude das naturais restrições ambientais, alta sensibilidade do ecossistema local e da necessidade de se poupar o bioma, cabe à política pública proteger e liderar o processo de ocupação civilizatória que evite a exploração predatória. Uma verdadeira cidadania das águas, vetor limpo de desenvolvimento, nestes tempos em que estamos atingindo o limite do que pode ser resolvido por tecnologia. Mas ser um Estado exemplar para nós e nossos vizinhos, preocupado com a sustentabilidade de seus próprios projetos e ações e não somente fiscal da sustentabilidade dos outros.

Desde Euclides da Cunha, o Brasil busca compreender e construir os eixos físicos, estradas, hidrovias, ferrovias, hoje acrescidos de infovias, radares, satélites e tecnologias. Rumo ao sonho de integração interoceânico e continental que nos leve de Roraima a Georgetown; de Manaus a Caracas; de Assis Brasil a San Juan , da bacia amazônica do Atlântico ao litoral amazônico do Pacífico. Usinas binacionais com Bolívia e Peru. Verdadeiros anéis energéticos de energia limpa disponível para toda região.

É a integração física que aumenta a convergência e a harmonia de propósitos entre nosso povo e nossos vizinhos. E dá sentido e qualidade à integração política, sua principal conseqüência.

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Paulo Delgado, sociólogo, foi deputado federal por seis mandatos.


Paulo Delgado
Paulo Delgado
Sociólogo, Pós-Graduado em Ciência Política, Professor Universitário, Deputado Constituinte em 1988, exerceu mandatos federais até 2011. Consultor de Empresas e Instituições, escreve para os jornais O Estado de S. Paulo, Estado de Minas e Correio Braziliense.

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