Espelhos do Universo
Correio Braziliense e Estado de Minas – domingo, 16 de outubro de 2011.
Se cada país assumir as maneiras do outro fica difícil compreender a origem do sotaque dos Brics. É certo que nem toda a causa dará ao conjunto uma mitologia, compatível com sua grandeza. Mais importante será construir uma doutrina no campo dos valores ou tudo se resumirá, como sempre, ao realismo do poder. Talvez por isso o grupo — não tendo encontrado uma pista universal para expressar sua autonomia — insista no contrapensamento. Pelos sons disformes que saem de suas decisões conjuntas, o risco é ver diminuir, e não aumentar, a riqueza simbólica das nações que representam.
Nações polarizadas, em relação a temas inegociáveis da agenda internacional — a busca da paz e a defesa dos direitos humanos — combinam mais com formalismo do que com independência. A história das nações está escrita e, algumas, com a violência de cavadores de túmulos. Reconhecer a evidência de que novas nações influenciam a política mundial não é andar sempre na companhia delas. Muitas vezes, estaremos diante do caso em que as partes, separadas, são muito melhores do que o todo. E em questão de paz, democracia e direitos humanos, o Brasil é o melhor dos Brics.
A abstenção de Brasil, Índia, África do Sul e o veto de Rússia e China na última votação do Conselho de Segurança da ONU impediram a condenação do governo da Síria. Com isso, seu ditador, que em breve será réu no Tribunal Penal Internacional (TPI), ganhou uma sobrevida para continuar o assassinato de civis que desejam a democracia. Isso mostra bem a discrepância que é a tendência automática por alinhamentos. Na calçada oposta, também circula o unilateralismo. O efeito dessa interação desfocada e momentânea , entre países com visão e estágios tão diferentes do que seja democracia e liberdade de opinião, é intranquilizador.
Na China, o Nobel da Paz de 2010, Liu Xiaobo, está preso desde 2009 e condenado a 11 anos de prisão por causa de sua longa e não violenta ação intelectual. Seu crime foi ter organizado um abaixo assinado, a Carta 08, que defende o respeito aos direitos humanos, além de mais liberdade e democracia. Liu é presidente da seção chinesa do PenClub, uma entidade internacional de escritores.
Na África do Sul, o governo conseguiu estragar a festa de 80 anos de Desmond Tutu, Nobel da Paz pela sua luta contra o apartheid . Impediu que o consagrado arcebispo anglicano convidasse o líder espiritual tibetano dalai-lama , outro Nobel da Paz, para o culto religioso de seu aniversário. Não lhe concedeu o visto de entrada no país. Quem diria! O governo do partido de Mandela — também Nobel da Paz, por sua luta pela liberdade e a reconciliação! O arcebispo, sereno e firme, sentenciou: esse governo “é pior do que os dos tempos de apartheid”. E completou: “Vamos rezar como rezamos para a queda do apartheid. Vamos rezar para a queda desse governo que nos representa tão mal”.
Em Moscou, a política fechada do país ruma para o czarismo total com Vladimir Putin, indicado pela terceira vez candidato a presidente da Rússa. O teatro democrático ali encenado pode mantê-lo no poder até 2024. Com vocação militarista e saudosista do império ao qual serviu como espião, ele prometeu construir a União Euro-Asiática e avançar em busca da grandeza perdida. As intempestivas e arbitrárias ações comerciais do país, algumas seletivamente contra o Brasil, fortalecem a desconfiança que os mantêm fora da Organização Mundial do Comércio (OMC).
O turbulento ambiente doméstico da Índia esconde as sutilezas da versão atual da sua política de não alinhamento. Pouco tem a ver com a doutrina criada por Jawaharlal Nehru, seu primeiro governante após a independência. Salvo manter a tradição original de “defenderem com inteligência os próprios interesses”, os indianos se recusam a participar dos regimes multilaterais antiproliferação nuclear e não escondem seus interesses militares no exterior. Embora em doses ocultas de competitividade, a reestruturação estratégica do poder na Ásia, na África e no Oriente Médio, que a Índia leva adiante com a China, aponta para o surgimento de uma agenda complementar claramente militarista.
Alianças multilaterais inovadoras não podem se comportar como barcos pesqueiros no mar turbulento da política internacional. Nem querer convencer o mundo de que sua missão é a mesma de Ismael, caçador de Moby Dick, “atormentado por um desejo permanente de coisas distantes”. Jorge Luis Borges, aliás, sintetiza bem o que pensa do romance de Melville, um alerta poético às baleias emergentes dos Brics: “A perseguição que esgota os oceanos do planeta são símbolos e espelhos do universo”.
Ou seja, com países sentenciosos, sem silêncio na alma, nada vai mudar na liderança de nosso ameaçado mundo.
Paulo Delgado, Sociólogo, ex-deputado federal.