Feliz ano novo: como enfrentar 2023

01/01/2023

Todos os países vivem o mesmo padrão de cansaço. O de viver influenciado pela postura do outro. Ser espelho estilhaçado de si mesmo é um convite ao desespero. Como 1º de janeiro é o único feriado verdadeiramente universal, o artigo de hoje é uma pausa para propor certa forma de enfrentar 2023. Homenagem ao horizonte da voz interior para reduzir o risco de se contaminar por tudo que vê, ouve ou fica sabendo. O excesso de estímulos, a obsessão por festa grande, fragmentou a importância do detalhe. O sofrimento atual é fruto da destruição da atenção. Quem vive só de fatos e eventos, adoece deles.

A falta de flexibilidade diante de situações novas faz a pessoa tropeçar na realidade. A vida é de combinações. A boa análise política é intuitiva e nasce de uma espécie de camaradagem entre o fato, a realidade e a continuidade das coisas. A política é da ordem do momento e desliza pela realidade. Montanha russa onde o demorado tempo de subida é esquecido pelo prazer tão curto de descida.

Não há mal que perdure, nem bem que sempre dure, seria um princípio bem compreendido se os excessos da vida fossem uma exceção. São regras que destruíram a solenidade, o temor e o respeito pela autoridade quando lambuzada do poder. O fato é que se a pessoa influente, na vida privada ou pública, se comporta tão desprimorosa e descuidada de modos, não transmitirá nenhuma profundidade nas suas atitudes. O olhar opaco, o desalinho dos movimentos bruscos, tiraram da boa-fé qualquer salvo-conduto.

Como a realidade nunca se distrai, a rigidez de opinião e o fatalismo são uma submissão ao fato que torna a personalidade inútil. Na economia, a dimensão da duração das coisas é mais viva do que na política porque a economia é fato material, meio, não um fim. Nenhuma riqueza salva a vida das suas reticências se enriquecer desvalorizar o comum e o passageiro. Porque o essencial é o eterno, espiritual, como o primitivo sonho humano de felicidade. A vida e sua elasticidade não são um acessório das condições materiais. O início do ano é um bom momento para o encontro daquele que nada quer entender com quem nada quer ver. E, juntos, desconfiarem daquele que só vê o que quer.

Faça em casa reservas espirituais para momentos de angústia, mantimentos para a alma em despensa de bons princípios. Descubra a força que vem da fraqueza, pois nos tempos de maior aflição podem aparecer as maiores revelações. O que está em jogo sempre é a vida. Devemos ter absoluta consciência do modo de pensar que nos convém e ao qual nossos valores estão vinculados. Assim preparados para os confrontos com os fatos que podem nos desviar de nossa missão original. Fixe o lema “eu sou e eu quero” para enfrentar e sobreviver a situações ruins. Tenha a humildade do Sol, que se imaginou astro-rei solitário e único, até ser obrigado a aceitar o movimento da terra, que esconde sua luz, e a faz, no reflexo da Lua, mais bela para muitos.

Uma sociedade que não se deixa mais intimidar por nada, onde tudo é luta por prazer, poder e subordinação não se dá repouso. Despreza os contemplativos, hipervaloriza os ativos, usa e abusa de compras, não percebe o tanto de fúria e incompreensão que acumula. Especialmente quando a astúcia e a petulância passam a ter mais valor do que a sinceridade e a harmonia. Uma sociedade frágil, onde qualquer acusação, mesmo que falsa, pode ter um fundo de verdade.

Evite ser a pessoa momentânea, criada pela pressa e o consumo, esquecida do futuro. Valorize quem queira trocar ideias, retire da conversa coisa útil que ajude na compreensão das questões práticas ou espirituais. Não confira, em qualquer tela, se quem fala está certo ou errado, como um fiscal do outro. Verdade e bondade, param em pé por si só. Evite a lista dos fatos como quem quer confirmar ou impor uma edificação pessoal por tanta informação. Não dê solenidade à distinção. Moderação, inquietude e dignidade ajudam mais a viver que desafio e competição.

“A máquina de meu avô imprime o texto na hora que ele escreve”, disse maravilhada a menina diante de valores antigos. Provocou gargalhada no primo smartphone. Será que esse mundo hi-tech, de sentimentos manipulados, que tanto recebe e não sabe perder, é avesso à singeleza da neta de um amigo? É compreensível que o mundo atual não veja valor na simplicidade da máquina de datilografia. Mas continuando escravo do virtual e digital, é o contramodelo da liberdade, zumbi fitness, o antilivre ideal. A tecnologia parecia um brinquedo de Deus. Não a deixe fazer de Deus um brinquedo.

Paulo Delgado
Paulo Delgado
Sociólogo, Pós-Graduado em Ciência Política, Professor Universitário, Deputado Constituinte em 1988, exerceu mandatos federais até 2011. Consultor de Empresas e Instituições, escreve para os jornais O Estado de S. Paulo, Estado de Minas e Correio Braziliense.

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