Formosa
Estado de Minas e Correio Braziliense, domingo, 24 de Janeiro de 2016.
Dia 16 de janeiro, o Partido Democrático Progressista ganhou, como se fosse um passeio, as eleições presidencial e legislativa de Taiwan, a pedra no sapato da China. Foi a mais dura derrota do Kuomintang desde que tomou controle da ilha em 1949, após bater em retirada da China continental por causa da vitória dos comunistas. Após governar com mão de ferro até 1996 iniciou-se, por influência dos EUA, o período em que eleições diretas para presidente foram realizadas na ilha, batizada de Formosa, uma delicadeza dos portugueses.
Com a normalização das relações dos EUA com a China continental, após a visita de Nixon a Mao, a introdução da economia chinesa no mercado internacional deslanchou. Os expatriados chineses que povoavam, e ainda povoam a série de territórios ao longo do Mar da China Meridional, foram os primeiros a se entusiasmar com o abraço dado entre Pequim e o capitalismo. As reformas que deram origem ao que foi apelidado por Deng Xiaoping de “capitalismo com características chinesas” foram o chamariz perfeito para uma série de investimentos realizados por descendentes da China continental na velha pátria. Os taiwaneses, por exemplo, inundaram Xiamen, propício portão localizado nas praias do outro lado do estreito, de dinheiro. Suas elites aproveitaram muito bem a simbiose possível com a alta oferta de mão-de-obra em terreno de língua e cultura histórica similar e baixíssimo valor relativo da moeda. A geração de riqueza para os ilhotas, que já vinha bem com auxílio americano, deslanchou. Mas do ponto de vista geopolítico, Taiwan diminuía em importância.
Nesse contexto o Kuomintang, Partido Nacionalista, estreitou, com intermitências aqui e ali, seu alinhamento com Pequim. O último presidente da ilha, Ma Ying-jeou, que começou seu governo com a política dos três nãos (não à reunificação, à guerra e à independência) sai agora como o mais próximo aos mandarins do Partido Comunista Chinês (PCC). Enquanto a propaganda chinesa vai ganhando força nos bastidores e nos interesses mais enraizados, uma novidade desponta: o senso nacionalista de Taiwan emerge no sentimento de sua juventude. Não deixa de ser paradoxal que no momento em que o Kuomintang se rende aos charmes da velha pátria mãe, tornada líder global, a nova geração taiwanesa fica apreensiva de perder as vantagens relaxadas da democracia. Que permite a liberdade para decidir seus rumos, diferente da autocracia partidária dos 1,3 bilhão da “nação chinesa”. Sonho de Pequim, ver o conjunto completo entre China continental e suas províncias independentes ser assim chamado.
Pontualmente, a vitória eleitoral em questão, que levará Tsai Ing-wen, uma mulher simpática aos discursos independentistas, ao poder, gera a necessidade de um novo movimento na mais intrincadas das situações geopolíticas globais atuais: a relação entre EUA e China. Taiwan é ponto de honra para os chineses. É cavalo de batalha secundário para americanos. A verdade é que, tirando a experiência democrática recente, com suas interessantes demonstrações de esperança das minorias, a autonomia da ilha é mero produto da Guerra-Fria. Lá em 1949, em geral, quem fugiu para Taiwan não vinha fazendo bem aos chineses. De lá para cá os próprios líderes do dissenso deram um jeito de chegar a uma acomodação vantajosa. Aos EUA, objetivamente, só restariam admitir isso, mais cedo ou mais tarde, sob o risco de ficar com cara de viúvo interesseiro da Guerra-Fria.
Ora, mas há a beleza incerta e faceira da democracia. Uma vitória de lavada foi dada ao anti-establishment. Ajudada por razões tão prosaicas como o fato de uma menina nacionalista não poder carregar uma bandeira de Taiwan em evento de adolescentes. Os EUA, que ganharam o presente de surpresa, não poderão, entretanto, deixar de prosseguir sua barganha com a China. Barganha que passa por Taiwan. A princípio a vitória da oposição agrega valor à concessão que os EUA podem fazer em troca de uma paz duradoura no Extremo Oriente. Não são poucos, como Charles Glaser, Diretor do Centro de Estudos de Segurança e Conflitos da Universidade George Washington que entendem que o Pivô para a Ásia, lançado por Obama enquanto Hillary era Secretária de Estado, deveria ser temperado com barganhas como, por exemplo, reconhecer a ideia de uma nação, dois sistemas, no caso de Pequim e Taipei. Uma aceitação tão cara para Pequim que pode, sim, amolecer seu coração quanto a solicitada desescalada das ações militares em redor de sua costa.
A prontidão permanente tem, muitas vezes, como único motivo, estar preparada para se defender de adversários que não admitem formosura alguma no lado vermelho do complexo mundo chinês.
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PAULO DELGADO é sociólogo.