INCERTEZA GENUINA NA INDIA
Correio Braziliense e Estado de Minas – domingo, 23 de julho de 2017.
Décimo-quarto presidente eleito na milenar nação asiática que na metade do século XX optou pelo regime democrático, Ram Nath Kovind confirmou seu favoritismo e ganhou a disputa para chefe de estado da Índia. Derrotou a candidata apoiada pelo clã do legendário Gandhi, Meira Kumar. Ele, entrando em seus setenta anos, era o nome alinhado ao primeiro-ministro Narendra Modi, que é quem de fato exerce a autoridade maior sobre os desígnios políticos do país.
O que poderia ter sido apenas uma típica disputa entre o bloco oposicionista, representado por Kumar, e o governo constituído em torno do partido Bharatiya Janata (BJP), liderado por Modi e representado na disputa por Kovind, ganhou ares interessantes pelo fato de que as figuras escolhidas para encabeçar as chapas eram dois membros da oprimida comunidade Dalit.
No pitoresco sistema de castas do hinduísmo, os Dalits são o povão, a ralé à qual os trabalhos mais desgostosos, degradantes e desprestigiados são atribuídos. A observância de tal sistema foi proscrita com o advento do regime democrático, mas o ingrediente que alimenta sua gramática ancestral permanece na sociedade do país. Tanto que os significativos avanços experimentados por tal grupo nos anos recentes têm sido fruto de uma ação organizada deles próprios, contra a tradição. E não por sua dissolução dentro da sociedade em que a lei oficial não reconhece mais tais segregações.
Babasaheb Ambedkar foi, no século passado, a ponta de lança intelectual a formular, de maneira ampla e coerente, a necessidade de ações que viabilizassem uma vida plena para os Dalits na Índia moderna. Agora, no século XXI, a causa vem se beneficiando sobremaneira dos avanços tecnológicos, difusão da informação e conexão de pessoas e formação de redes. Maldades perpetradas contra Dalits, às vezes filmadas pelos próprios algozes, ao se viralizarem nas redes sociais têm sido trabalhadas de forma hábil para resultar em desconcertantes movimentos populares de protesto. Como eles correspondem a 17% da população do país de um bilhão de almas, as ondas que suas reclamações organizadas fazem chacoalham suficientemente o país a ponto de já terem tido suas lideranças incorporadas ao topo das principais agremiações de poder.
Todavia, isso ainda não é suficiente para mudar a acachapante estatística de que 90% deles vivem abaixo da linha de pobreza. E no arranjo indiano de apaziguamento a presidência ofertada é uma solução engenhosa de mudança, sem mudança. Da forma como foi desenhado, o cargo só exerce poder simbólico. Daí que sua ocupação por um Dalit configura apenas um arquétipo de uma aspiração, um sonho não dotado de ferramentas decisivas.
Milenares que são, alguns exegetas influentes murmuram: ainda não é chegada a hora. Outros, mais rasos, se satisfazem em responder ao momento com eficiente manobra eleitoral que silencie inconvenientes cidadãos abandonados, que se organizam em número e modo impossível de ignorar. A presidência parece uma brilhante ideia para a identificação das massas com seu opressor. Uma coroa de lata para ornar o amplo rol de políticas afirmativas instituídas para adiar a ruptura com uma tradição que permanece sem solução.
Ainda resiste uma confusa banalização a respeito da prática de violência e humilhação contra Dalits. São violentados, espancados e mortos numa média superior à das outras grandes castas. Além, é claro, de serem na prática alijados do acesso aos caminhos estabelecidos de ascensão social.
Por fim, como um cético desmancha prazer, não é possível refletir sobre o arranjo institucional indiano, esse páreo outorgado graciosamente à casta mais oprimida do país, sem pensar que tal fato está inscrito no caminho que se pavimenta em todo o mundo atual: o esvaziamento do poder dos ocupantes dos cargos de poder. Um contexto em que as estruturas de decisão se organizam em instituições informais, ou gigantescas, à parte do governo constituído. Governos de fantoches, sob escrutínio e pressão que escapam às análises de risco e à capacidade de execução independente das estratégias que imaginou seguir.
Um mundo imprevisível e complexo demais está, nas democracias, limpando a percepção e purificando as intenções de eleitores ao parecer lhes dar poder de decisão. Assim é o poder da facção dos Dalits. Um poder esvaziado e manipulado nas sombras. Metafórico, uma incerteza genuína.
Narenda Modi é sem dúvidas um líder forte. Mas, ao escolher e bancar um explorado, faz uma didática demonstração do uso de artimanhas para manobrar o caos. Porque é difícil imaginar o devedor pagar ao credor que o governa. O que temos visto é o governante popular acatar o ponto de vista do seu opositor.
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PAULO DELGADO é sociólogo.