Instinto Selvagem
Estado de Minas e Correio Braziliense – 17 de julho de 2011
Somos o que nos falta, dispostos a tolerar o excesso pondo a culpa na escassez. Até que o descontrole transborde em crime ou grosseria e seja contido pela força dos incomodados. Quem sabe está aí o interesse de muitos pelo que fazem os outros, especialmente seus abismos e avessos. A curiosidade diante de personalidades exibidas desperta mais atenção quando a notícia sugere que sua alma foi decifrada. É que todos são sempre um pouco ridículos no competitivo mundo dos estigmas e preferências. A notícia “avisa” da existência de uma deformação da vida e sua rotina e aponta o caminho ou a pessoa que deve ser evitada ou imitada. E se encontra leitores é porque o escândalo nem sempre é um olhar para fora de nós mesmos.
Não é mais o leitor que lê a imprensa no mundo moderno. É a imprensa que lê seu leitor. Ás vezes desatenta ao fato de que nem sempre são compatíveis a verdade e muito dos seus meios. Especialmente os de comunicação de massa que atravessam culturas, nações e continentes mas às vezes esbarram, felizmente, num razoável senso de limite.
O turbinado cavalo de corrida australiano Rubert Murdoch pressentiu que as leis da natureza e do inconsciente são mais fortes do que as da política e partiu em delírio e volúpia sobre o ocidente. Criou ou comprou o News of the World, The Times, The Sunday Times na Inglaterra e o New York Post, 20th Century Fox, The Wall Street Journal e Fox News nos EUA. Se meteu em jornal de supermercado, suburbano, comunitário, vespertino, matutino e ao mesmo tempo avançou sobre o Canadá, China, Japão, Austrália, Indonésia.
Voou com a News Corporation por satélite, cinema, internet, TV a cabo para dentro de todos os países a partir de paraísos fiscais. Seja no aristocrático Reino Unido ou na democracia da América percebeu que o jogo de atrair e intimidar, seduzir e rechaçar é bem compreendido e praticado por quem tem poder. E foi em frente em movimentos violentos e apetite agressivo sobre todas as relações humanas.
Comensal de Presidentes e Primeiro-Ministros sentiu-se em casa nos endereços oficiais de Washington e Londres, diante do bufê de frios que é a coerência política no mundo atual. E passou a patrocionar o self service itinerante de partidos e ideologias a bordo do iate Rosehearty ou das asas de seu jato Gulfstream. Com a manipulação das preferências eleitorais do cidadão, que seu império de comunicação possibilita, fez e desfez aliados na política.
E começou a tropeçar. É reconfortante perceber sinais da alma de um país quando, diante de predadores, algum passarinho cai de seu ninho mais modesto. Ou quando falcões de respeitadas instituições seculares percebem que estão ameaçadas por aventureiros. Mas o erro do magnata não foi só a sensação de impunidade que exala da intimidade excessiva com o poder. Agia com desenvoltura também por perceber que sem a impressão digital somos todos similares. Até que violou suas fontes criminosamente e deixou de se beneficiar da dúvida que é saber se o escândalo é da imprensa que o divulga ou da sociedade que o produz.
Poucos se importam se privilegiados ou fora da lei são grampeados. Mas ele grampeou o injustiçado, milhares de pessoas cercadas por afetividade e simpatia. A menina sequestrada, o herói de guerra, a vítima do terrorismo, o homem comum desesperado, a família do nosso Jean Charles. Ele quis ouvir a ordem do cérebro para a produção do mal estar no corpo e na alma do desprotegido… e publicar sua reação como notícia. Queria captar o desespero da cobaia grampeada e lesar de forma silenciosa o luto dos vitimados. E ficou nú o rei que não crê em nada.
Quando o The Guardian, jornal britânico de 1821 revelou o método infame da cobertura jornalística do concorrente, o mundo anglo-americano acordou para a lei da selva e do furo. Não foram autoridades oficiais nem leis que detiveram o crime. Foi a reação de uma instituição – a imprensa livre e autoregulada – ao ataque brutal e inconveniente aos seus princípios. Sempre ameaçados quando a cobertura selvagem atinge gente que não tem mais nada a perder.
Paulo Delgado, sociólogo, foi Deputado Federal por seis mandatos.