Já é Natal na Venezuela
Correio Braziliense e Estado de Minas – domingo, 17 de Novembro de 2013.
Dizendo que o objetivo era derrotar a amargura e certo de que “ninguém poderá com a gente, ninguém poderá com a felicidade e o direito à paz, ninguém poderá com o nosso direito de ter um bom Ano Novo”, o presidente da Venezuela, acompanhado dos membros do Vice-Ministério para a Suprema Felicidade Social do Povo, abriu a feira Natalina Socialista de Caracas e decretou a chegada do Natal agora em novembro. O Estado-juiz não precisa de fundamento jurídico para a sua decisão de buscar mais espaço para a unanimidade.
É cada vez maior o abismo entre o imediatismo da politica e os interesses de longo prazo da sociedade. No horizonte de muitos governos populares estão sofismas e manipulações como forma de contornar escolhas duras para evitar o risco de colapso econômico e social de seus países. E têm levado para o ambiente político da esquerda um desalento teórico tão profundo que podemos chegar ao fato de não haver mais qualquer fundamento substancial para o conjunto de ações, decisões, práticas e pensamentos que poderiam, sincera e realisticamente, ser designados pelo nome de “esquerda”.
O princípio expresso na Declaração de Independência dos Estados Unidos em 1776 de que é um valor fundamental dos indivíduos o direito de buscar a felicidade, e que foi transposto para as constituições do Japão e da Coreia do Sul há quase 70 anos, começa a virar moda mais de 200 anos depois. No Butão, um reino de monges budistas encalacrado no Himalaia com a nobre função geopolítica de impedir atritos entre a China e a Índia, a referência ao Produto Interno Bruto (PIB) foi colocada de lado e nasceu triunfante o índice da Felicidade Interna Bruta para analisar o desenvolvimento do país. Recentemente, contudo, o novo primeiro-ministro do país Tshering Tobgay admitiu que uma ênfase exagerada nessa mensuração da felicidade se tornou uma “distração” que tem deixado graves problemas passarem despercebidos.
A ONU, essa sonolenta estatal transnacional faz um esforço enorme, na “corrida para os valores subjetivos”, para não consolidar seu status de presunçosa e fracassada burocracia intergovernamental. Dependente do orçamento e da política dos seus Estados membros, a entidade há alguns anos tem como principal objetivo durar. E assim, através de resoluções como a 65/309, também embarca – sonhando ser a guia – nessa empreitada para calcular de forma mágica o progresso. Nada disse da pressão do governo Sarkozy, incomodado com o fato da charmosa França estar fadada a não mais aparecer, dentro de poucas décadas, em uma das 10 primeiras posições no ranking dos PIBs.
É uma nuvem de contradições: a ilusão econômica tomou conta da cabeça das autoridades que fizeram do Estado um armazém geral; na sociedade aumentou o desencanto com a busca de outros sentidos para a vida dissociada do dinheiro e do crédito; o mais puro consumismo capitalista tornou-se um caminho para o socialismo. Antiga obscenidade de ingênuos a felicidade foi às compras.
A sociedade humana tem muito pouco a ganhar com o misticismo da política atuando sobre o sonho das pessoas. A hipermodernidade do discurso do distributivismo e da bondade não alcançam a verdade e a justiça se os cidadãos continuam dependentes da boa vontade das autoridades e tolhidos na sua capacidade de iniciativa. Defender valores inseparáveis da dignidade humana não é depositar nas mãos dos governos a função de zelar pelo cumprimento do direito natural. A boa virtude deriva do orgulho da sociedade pelas habilidades individuais de seus membros. Dar a qualquer governo a função de cuidar da felicidade abre a possibilidade para o privilégio dos que têm a “felicidade” de ajudar o governo nesta busca. As ações públicas de qualquer espécie, que visam melhorar a vida do ser humano, devem buscar diminuir a presença do Estado na sua vida e não aumentá-la a pretexto de ajudá-lo.
O Estado total é um buraco, não uma escada se não for capaz de criar um grau superior de unidade entre os cidadãos, interconexões e interdependência técnica e organizacional para a autonomia. O Estado, por melhor que seja, por vício de função, não sabe transferir ou partilhar conhecimento, poder e soberania.
Na Venezuela, o Natal é um dos mais alegres e fervorosos do mundo cristão. As crianças vão para a primeira missa do dia 25 de patins e lotam as ruas em divertidas manobras. Pelo caminho os que levantam mais cedo chamam os outros que tiveram o cuidado de amarrarem no dedão do pé um pedaço de barbante que é posto para fora da janela da casa para ser puxado pelos madrugadores e assim acordar os preguiçosos.
A política como fervor religioso é doença. Um país transformado em dia de Natal, o fim do mundo. Há na vida outros critérios que não os da política. Depois, governante que quer ser dono de tudo, acaba não sendo do seu fim.
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PAULO DELGADO