Mal-estar na Europa
Correio Braziliense e Estado de Minas – 30 de Junho de 2014.
Estamos muito distantes da década de 1930, mas tão próximos. A violência continua persistente como força definidora das relações humanas. E o maior “afasta-tristeza” não são costumes civilizados, tolerância à ética ou a democracia. Os anti-depressivos ocuparam o lugar das instituições. Pois há uma lei geral da boa convivência sendo desrespeitada: para sermos tolerantes temos que definir bem o que é intolerável.
O caráter multicultural do continente europeu foi a principal força da bandeira da união dos seus países no pós-guerra. Mesmo com a contestação dirigida à União Europeia e acirrada desde o início da crise econômica no final da década passada, são os grupos ocultados dentro de cada país e as minorias de fácil identificação os mais atacados. Na Europa a palavra União não contém o seu significado. E a crise só faz isso crescer.
É impossível não levantar o sinal de alerta diante da crescente saída dos judeus notadamente da França. A expectativa é de que um recorde de cinco mil deixem o país, somente para Israel, neste ano. O poeta Goethe dizia que a condição dos judeus é o termômetro do grau de humanidade da humanidade. Pode-se ir além e afirmar que a condição das minorias em geral é o que mede realmente o grau de humanidade vigente. O Estado precisa dar um basta nesta torta percepção que usa todo tipo de crise para culpar a pessoa que pensa e vive diferente ou querer integrá-la ao mundo oficial.
Outro caso persistente de sofrimento de minoria, especialmente na Europa é o dos ciganos. Há uma semana, chocou o mundo o corpo do rapaz agonizante encontrado em um carrinho de compras num subúrbio de Paris. Os ciganos, chamados “roms” na França, são um povo específico e nômade. Há outros povos de cultura nômade dentro da Europa, mas sua maior parte hoje vem da Bulgária e da Romênia. De fato, uma específica compreensão do mundo, uma arqueologia que combina o visível e o segredo, os faz viverem nas cidades em atividades normalmente à margem do que é bem visto. Mendigam, tentam vender gato por lebre, há até batedores de carteira e outros mal-intencionados, mas a ira a que estão expostos se assenta sobre um ódio à sua própria condição. E assim os ciganos têm sido, vira e mexe, espancados, expulsos sempre, e mortos de vez em quando dentro de um continente do qual são cidadãos – com seus passaportes búlgaros, romenos, tchecos, entre outros – de segunda categoria. A diferença para o discurso da década de 1930 é que, então, eles eram ditos de uma “raça” de segunda categoria.
Em Paris recentemente vazou uma instrução policial para que os guardas que patrulham o chique 6º arrondissement identifiquem e retirem “dia e noite” famílias ciganas que perambulem na área. Mas não é só ali. A França destrói sistematicamente acampamentos ciganos nos seis cantos do Hexagone, como apelidam seu território continental.
Cada homem livre é uma minoria habitada no seu corpo. E como tal, sua história de potencial abandono, raiva, zombaria e perseguição é parte da insuficiência das normas deixadas de lado pela humanidade em cada país onde vive. A fragilidade diante da natureza; o abandono da família pelo Estado empilhado de leis que visam a estatização de tudo e não a liberdade do cidadão; a fragilidade psíquica diante do uso tolo da tecnologia levando ao desaparecimento crescente da interação humana e da amizade são alguns dos maus agouros desse tempo.
O desconforto cresce com a tensão irracional do momento e da grande alegria que o governo socialista de François Hollande parece tirar da sua incapacidade pessoal de governar. Tal falta de racionalidade advém da contínua negligência da política para a explicação da realidade. De uma falta de defesa qualificada e sincera dos méritos da União Europeia, e de suas dificuldades.
Na página de debates do jornal parisiense Le Monde no meio da última semana, artigo assinado por quarenta CEOs de empresas francesas, grande parte do chamado CAC-40 – índice das 40 empresas mais significativas na bolsa de Paris – chama os europeus a “acordarem” e impedirem o “pesadelo” que seria a anulação dos tratados de Schengen, de Maastricht, de Roma; em suma, o fim da União Europeia. Responsabilizam as lideranças políticas pela confusão mental que reina no país, mas fazem um mea-culpa pela insuficiência das explicações onde impera “um formidável déficit de pedagogia”, culpa de toda a sociedade acomodada.
E um bom recomeço a praticar e ensinar é que não se oprimem minorias por conta das dificuldades da nação. A Europa anda precisando de um choque de razão para voltar a repudiar o infortúnio pois, sabe bem, que força sem autoridade é uma ilusão insustentável.
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PAULO DELGADO é sociólogo.